sexta-feira, 11 de março de 2016

DIREITOS HUMANOS,
AUTODETERMINAÇÃO E BIOÉTICA




Horst Vilmar Fuchs1



SUMÁRIO
Introdução. 1 Dignidade da pessoa humana. 2 Autodeterminação sob a Declaração Universal dos Direitos do Homem. 3 Autodeterminação sob a Bioética. Conclusão. Referências.


RESUMO


Busca-se delimitar, no presente estudo, os contornos da autodeterminação, uma vez que, em situações extremas, se vislumbra que terceiros substituam a necessidade do paciente pela de terceiros, sob argumento de que deve, a qualquer custo, se preservar a vida. Inicialmente foi apresentado o traço distintivo do ser humano, isto é, sua capacidade de razão, sendo o fundamento para tal tutela a dignidade da pessoa humana, consubstanciada na vigente Constituição Federal Brasileira. Em seguida, foi analisada a autodeterminação sob a ótica dos principais instrumentos de declaração dos Direitos Humanos, a saber: as declarações francesas dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e de 1793 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesta última, foi destacada a necessidade do afastamento de interferência de terceiros nas escolhas que refletem sobre a própria pessoa. Prosseguindo, foi analisada a interseção da autodeterminação na bioética, observando os princípios da beneficência, da autonomia, do respeito à vida, da justiça e da não-maleficência. Estes princípios aplicam-se ao caso de recusa de terapia, confrontando os direitos do paciente com a responsabilidade e conduta ética do médico. Finalmente, chegou-se à conclusão de que é possível, sob uma decisão consciente e fundamentada, escolher e recusar terapias, desde que não reflita em danos a terceiros e à sociedade.

PALAVRAS-CHAVE

Direitos Humanos. Declaração Universal. Constituição. Dignidade. Pessoa humana. Autodeterminação. Liberdade. Tratamento médico. Transfusões sanguineas.

ABSTRACT


One searchs to delimit, in the present study, the contours of the self-determination, a time that, in extreme situations, understands it necessity to substitute the will of the patient for the reason of third, aiming at the preservation of the life. Initially the distinctive trace of the human being was brought to the attention, emphasizing its capacity of reason, being the bedding for the guardianship of the dignity of the human being, its definition and its protection in the Brazilian Federal Constitution. After that, it was necessary to analyze the self-determination under the optics of the main instruments of declaration of the Human Rights, namely: French Declaration of the Rights of the Man and the Citizen of 1789 and of 1793 and the Universal Declaration of the Human Rights. In this last one, was emphasized the removal of interference of third in the choices that they reflect on the proper person. Continuing, we analyzed the intersection of the self-determination in the bioethics, observing the principles of the benefit, of the autonomy, of the life respect, of the justice, in the not-slander. We apply these principles to the case of therapy refusal, collating the rights of the patient with the responsibility and ethics behavior of the doctor. Finally, was concluded that it is possible, under a conscientious and based decision, to choose and to refuse a kind of therapies, since that it does not reflect in damages to a third person and to the society.

KEY WORDS


Human rights. Universal Declaration. Constitution. Dignity. Human person. Self-determination. Liberty.

INTRODUÇÃO


O direito de decidir sobre sua própria vida, em todos os aspectos, denominado autodeterminação, tem ganhado especial atenção no mundo jurídico, e tem exigido estudos atualizados, por parte da comunidade acadêmica. Especial desafio, desta questão, é responder se há limites para que uma pessoa decida sobre si, quando esta decisão pode comprometer sua integridade física. Imperioso estudar, portanto, os contornos da dignidade da pessoa humana, especialmente, sob o prisma das Declarações de Direitos Humanos. Interessa-nos, como objetivo deste estudo, afirmar se há ou não um limite para que um paciente decida sobre a terapia que deseja se submeter, podendo-as recusar, mesmo que tal decisão coloque sua vida em risco. Poderia o Estado substituir, nessas condições extremas, a vontade do paciente?

A abordagem exigirá uma análise no significado da dignidade da pessoa humana e a importância de sua positivação em dado sistema jurídico; toma-se por base o ordenamento jurídico brasileiro, já que enuncia a proteção deste valor como fundamento do Estado. Em seguida, será necessário verificar se tal direito está albergado pelas diversas Declarações de Direitos Humanos.

Prosseguindo as pesquisas, imprescindível verificar os conceitos da bioética, já que o tema em análise encontra-se intimamente ligado a esta área do direito. Verificaremos como os princípios da bioética podem auxiliar na elaboração de uma proposta que apresente os contornos da autodeterminação.

Desta forma, será possível estabelecer, à luz das principais Declarações sobre Direitos Humanos, dos conceitos da dignidade da pessoa humana e dos princípios da bioética, os âmbitos e limites da autodeterminação, quando está em jogo a própria vida humana.

1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


Os debates em torno da autodeterminação conduzem, invariavelmente, na análise de casos extremos, na preservação da vida, atribuindo-se ao Estado o dever de manter a vida de seu povo. Tal fato determina, porém, uma análise sobre a mais importante característica do ser humano: a racionalidade.

Assim, passemos a abordar algumas definições sobre o Homo sapiens, iniciando com a conclusão do Professor Daury César Fabriz, após exaustiva reflexão, afirmando que “O homem torna-se tema de si mesmo, objeto de suas especulações, na busca do domínio do seu próprio destino do mundo” e acresce ainda que

O homem concede significado à sua própria existência no mundo. O significado que o homem oferece a si mesmo advém da sua capacidade racional de objetivar e construir toda a realidade que o cerca. O conhecimento produzido pelo homem proporciona sempre um novo significado à sua existência; uma existência que a todo momento se encontra em reconstrução (2003, p. 49).

De fato, vemos que o homem modifica seu meio, seu habitat, ao utilizar seu potencial psíquico. O mundo é alterado e esta mudança, por sua vez, provoca outras, num ciclo infindável. Isto é facilmente detectado pela análise da história, mesmo quando se verifica um curto período de tempo.

Mas, o que desejamos destacar, ainda mais do que as mudanças de ordem puramente material, são as de ordem social e moral, somente possíveis ao ser racional pois “O significado que o homem oferece a si mesmo advém da sua capacidade racional...” Eis o que estamos a salientar: a racionalidade, que é ímpar, concedida ao ser humano e que “proporciona sempre um novo significado à sua existência...” (FABRIZ, 2003, p. 49).

Refletindo sobre o tema, o Professor Daury César Fabriz, ao buscar a perfeita e consagradora definição do tema tratado neste tópico, concluiu: “O Homem é aquilo que o seu conhecimento pode indicar que ele é”. Extraia-se desta expressão a natureza não física, mas mental, psíquica, tendo por corolário que a qualidade de raciocínio inerente no homem não é apenas um diferencial, mas elemento principal. Basta indagar se uma pessoa que possui um físico, resultando num ser cabalmente debilitado deixaria esta de ser um homem, um ser humano? Não haveria quem defendesse uma resposta afirmativa.

Tomemos outro exemplo, a de uma pessoa gravemente enferma, inapta a locomover-se e - para se chegar a um caso extremo - sem condições de se alimentar por seus próprios movimentos, necessitando a todo tempo de ajuda até mesmo para as atividades mais simples. Ainda assim seria inconcebível retirar-lhe sua dignidade qual ser humano. Também, por esta razão, ninguém ousaria tirar a vida de uma pessoa pelo simples fato de estar fisicamente debilitada.

A conclusão acima nos leva a verificar que, para a vida do homem ser significativa, vivida a contento, tornar-se-á necessária a instituição de direitos fundamentais baseado na condição do homem sob os aspectos dele como pessoa, cidadão, trabalhador e administrado, sendo irrenunciável sua individualidade (1999, p. 248).

O respeito à integridade física, psíquica e moral encontra-se inserido no princípio da dignidade humana conforme muito bem tratado pelo Dr Daury Cesar Fabriz mencionando que “Em decorrência desse princípio, ninguém poderá ser submetido a torturas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; da mesma maneira que ninguém poderá arbitrariamente ser detido, preso ou desterrado, assegurando-se a liberdade de pensamento e culto religioso” (2003, p.273).

Nota-se que o respeito à dignidade da pessoa humana transcende os limites do físico, do corpo humano, uma vez que abarca também o culto religioso e a liberdade de pensamento, o que se verifica ao analisar diversos incisos do artigo 5o. da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como os que excertamos abaixo:

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; [...]

Há outros, mas, como afirmamos, nosso objetivo foi trazer exemplos para tornar visível a preocupação do constituinte em preservar a dignidade da pessoa humana trazendo, inclusive, direitos fundamentais, de caráter físico (corpo, incisos VIII, X e XI), psíquico (liberdades de consciência e de expressão, incisos VI, VIII, IX e X) e espiritual (liberdade religiosa, incisos VI, VII e VIII).

Não há como prosseguir em nossos estudos, no entanto, sem enfrentar o que vem a ser vida humana o que nos leva a abordar o tema “pessoa humana” e todos os elementos de sua dignidade.

A vida humana é o ápice da proteção do direito, sua maior preocupação, a ponto de propulsionar, invariavelmente, as melhorias dos ordenamentos jurídicos. Tomemos como exemplo o Código Penal Brasileiro que, abrindo a Parte Especial, em ser art. 121, estatui: Matar alguém: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.

O intuito da pena é de preservar a vida. Mas a Constituição Federal traz ainda outros exemplos de preservação da vida, sendo a tutela maior a ser oferecida à população, a saber: o art. 5o. caput:

  • Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...


Nos aprofundaremos mais para apurar os significados e abrangências deste dispositivo constitucional, mas por ora, visamos demonstrar a preocupação de Nossa Carta Maior em defender o direito à vida, encabeçando um rol de direitos e garantias individuais e coletivos.

Abordando os direitos e liberdades, a ilustre professora Suzana de Toledo Barros (2003, p. 131s), que também colaborou nos trabalhos da última Assembléia Nacional Constituinte, classifica-os em quatro categorias, ordenados em ‘gerações’, sendo: 1a. a liberdade religiosa; 2a. as liberdades civis, políticas e sociais; 3a. dos direitos difusos de natureza transindividual e, por fim; 4a. dos direitos ambientais.

Pela análise realizada acima, pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana tem uma amplitude que transcende os limites físicos. De fato, o professor Dr. Daury César Fabriz manifesta conclusivamente que “A dignidade da pessoa humana expressa-se como corolário de todo arcabouço ético de uma sociedade” (2001, p. 275).

Certamente, esta conclusão encontra guarida na Constituição brasileira, ganhando destaque, ao ser mencionado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, pois vejamos:

Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político. (grifos acrescidos).

Constituindo a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República Federativa resulta em apurarmos a importância desta no sistema jurídico brasileiro. Esta constatação conduzir-nos-á a pesquisar qual nível ocupa, em relação aos demais valores que busca este tutelar.


1.1 Posição ordinal da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico

Comentando o preceito, Uadi Lammêgo Bulos ressalta a importância da dignidade da pessoa humana neste rol de fundamentos, afirmando que

A dignidade da pessoa humana é o valor constitucional supremo que agrega em torno de si a unanimidade dos demais direitos e garantias fundamentais do homem, expressos nesta Constituição. Daí envolver o direito à vida, os direitos pessoais tradicionais, mas também os direitos sociais, os direitos econômicos, os direitos educacionais, bem como as liberdades públicas em geral. [...] A dignidade da pessoa humana, enquanto vetor determinante da atividade exegética da Constituição de 1988, consigna um sobreprincípio, ombreando os demais pórticos constitucionais, como o da legalidade (art. 5°, II), o da liberdade de profissão (art. 5°, XIII), o da moralidade administrativa (art. 37) etc. Sua observância é, pois, obrigatória para a interpretação de qualquer norma constitucional, devido à força centrípeta que possui, atraindo em torno de si o conteúdo de todos os direitos básicos e inalienáveis do homem. (2001, p.49-50).

Uadi Lammêgo Bullos reputou à garantia, ora em análise, o grau de “carro-chefe dos direitos fundamentais na Constituição de 1988” (2001, p.50) lembrando que a dignidade da pessoa humana encontra-se prevista em diversos outros instrumentos constitucionais, como por exemplo, na Lei Fundamental de Bonn de 1949 que teve efeitos influenciadores na Constituição da Espanha de 1978, que em seu art. 1° reza: “A dignidade do homem é inatingível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder público” (2001, p.50). O poder constituinte português seguindo o exemplo, também assegurou logo na abertura dos dispositivos constitucionais tal garantia.

O alcance da dignidade da pessoa humana é defendido como sendo absoluto, conforme argumentado por Fernando Ferreira dos Santos, citado por Daury César Fabriz, pois afirma que “ainda que se opte, em determinada situação, pelo valor coletivo, por exemplo, esta opção não pode sacrificar, ferir o valor da pessoa” lembrando ser este o “instrumento balizador dos demais princípios e direitos compreendidos como superiores” e concluiu que “Se a vida é o pressuposto fundamental, premissa maior, a dignidade se absolutiza em razão de uma vida que somente é significativa, se digna” (2003, p.275).

Concluímos daí, que a vida humana somente terá sentido se vivida em dignidade, por isso, transformado em requisito essencial para o exercício do maior direito concedido ao ser humano.

J. J. Gomes Canotilho (1999, p.243), ao tratar dos direitos fundamentais, lembrou com muita propriedade que tais direitos criam para o Estado um dever, denominado “Função” e tendo como a primeira destas funções a de defender o ser humano das agressões aos seus direitos fundamentais e, ainda mais, explanando-nos sobre o que denominou ‘direitos de defesa’ sendo que estes, em dupla perspectiva

(1)constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). (1999, p. 243-244).

Exorta-se, portanto, ver o princípio da dignidade da pessoa humana como elemento intrínseco do ser, do existir humano. Abordaremos, a seguir, como o homem pode esperar ver instituído e protegido direitos que visem conceder-lhe um viver digno.

A dignidade da pessoa humana é, como demonstrado, o mais alto bem que pode ser tutelado, já que ultrapassa a preservação da vida, estritamente considerada, atingindo a preservação dos valores do ser humano. É uma das razões que trazem dificuldades para sua conotação, uma vez que deverá delimitar seu alcance. Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p.573) enuncia que a dignidade da pessoa humana é

a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.


Apreendemos, da definição acima, após considerações dos elementos constitutivos da dignidade da pessoa humana feitas pelo autor, que esta, por ser complexa, atribui deveres ao Estado e, concomitantemente, à comunidade, para proteger o indivíduo de atos desumanos. Neste ponto já podemos concluir que a dignidade tem conexão indissociável com a existência do ser, respeitando seus valores, sua cultura, seus costumes. Há que se garantir também, assevera o professor, condições mínimas de existência saudável e, ainda, atingir a harmonia social.


1.2 Irrenunciabilidade
Para chegarmos a uma conclusão devidamente fundamentada, parece-nos imprescindível analisar se a autodeterminação é absoluta ou se há condições ou circunstâncias que esta restará relativizada, isto é, se podemos conceber condições ou limites para a autodeterminação, ao que podemos definir como circunstâncias em que se chega a irrenunciabilidade de direitos, valores ou bens jurídicos.

Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 566) defende, na esteira de Martin Koppernock, que

a dignidade, na sua perspectiva assistencial (protetiva) da pessoa humana, poderá dadas as circunstâncias, prevalecer em face da dimensão autonômica, de tal sorte que, todo aquele a quem faltarem as condições para uma decisão própria e responsável (de modo especial no âmbito da biomedicina e bioética) poderá até mesmo perder – pela nomeação eventual de um curador ou submissão involuntária a tratamento médico e/ou internação – o exercício pessoal de sua capacidade de autodeterminação, restando-lhe, contudo, o direito a ser tratado com dignidade (protegido e assistido)”. (grifos acrescidos).

Afirma-se, por esta doutrina, que o homem pode perder a autodeterminação, passando o poder decisório a outra pessoa: um curador ou o médico, acima enunciado quando se faz referência a uma “submissão a tratamento médico ou internação”.

Concordamos como autor, porém, quando afirma, que “resta-lhe, contudo, o direito a ser tratado com dignidade”. Mas discordamos, data máxima vênia, da possibilidade de submissão a tratamento médico involuntário. Tal prática – obrigar o paciente a submeter-se a tratamento médico – afronta todos os princípios pertinentes à dignidade da pessoa humana, já que esta ignora a característica diferenciadora do ser humano: a razão. Forçar uma pessoa a um tratamento médico ou internação, quando este, quando no exercício de suas faculdades mentais normais, manifestou-se em sentido contrário, é tratá-lo como ser irracional, o que é inconcebível sob o atual estágio dos direitos humanos.


2 AUTODETERMINAÇÃO SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS


A história dos direitos humanos, cujos excertos servirão para nos auxiliar a melhor visualiza, a evolução das liberdades, uma vez que estão interligados por serem decorrentes que são dos direitos humanos, mostra-se relativamente recente.

No Século XIII tivemos a Magna Carga inglesa, mais precisamente em 1215, que resultou de um pacto entre o rei João-sem-terra e os barões rebeldes. Tal instrumento já continha normas jurídicas para proteger liberdades do povo em face da voraz atuação da Coroa. Estas disposições, lembra-nos Ireneu Cabral Barreto (1999, p.22), influenciaram documentos como The Petition of Rights (1628) e The Habeas Corpus Act (1679).

Assevera Antonio Cassese (1993, p.7) que no início do século XX, era comum ver atrocidades serem praticadas contra o homem, tais como discriminações e torturas. Tínhamos uma Itália fascista que obliterava as liberdades de expressão e associação; os Estados Unidos praticavam forte discriminação contra os negros. Em diversas nações os índios eram explorados de forma desumana e a então União Soviética reprimia de forma progressiva os direitos à liberdade.

Pouco antes, no século XVIII, para combater o desprezo pelos direitos básicos do homem, surge na França, em 1789, a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” que enunciava, desde seu preâmbulo:

Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem [...]

Frisamos, em análise ao enunciado preambular desta nobre Declaração, que os os direitos do homem, com raiz nos direitos naturais, tornaram-se necessários em decorrência das atrocidades e das práticas arbitrárias, assustadoramente comuns, dos governantes. Embora tenha conseguido amainar a situação, estas continuaram ocorrendo. Ireneu Cabral Barreto classifica esta declaração como a “formulação clássica dos direitos invioláveis do indivíduo” (1999, p.22).

Num movimento de constitucionalização dos direitos humanos, surgiu nos Estados Unidos da América, em 1791, o Bill of Rights com os dez primeiros princípios da constituição daquele país (BARRETO, 1999, p. 22).

Veio então a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, fornecendo não apenas um instrumento paritário, comum, de relacionamento entre uma nação e outra, mas, um parâmetro de como deveria o indivíduo ser tratado em uma sociedade, não atuando apenas de forma universal, mas inserindo valores antes ausentes em algumas constituições.

Não obstante tais instrumentos declaratórios, víamos ainda a desconsideração pelo que continham. Desta forma, comenta Ireneu Cabral Barreto (1999, p.22), “nos Estados Unidos, por exemplo, a sua Declaração de Independência consagrava a igualdade do homem, mas só 80 anos mais tarde a escravatura foi abolida”. Olhando para a Europa, similar fenômeno ocorreu, uma vez que, embora a Declaração dos Direitos do Homem atribuísse liberdade a igualdade formal, excluíram dela as mulheres, quando se tratava de direitos naturais (BARRETO, 1999, p.23).

Mas, a médio e longo prazo, qual foi o efeito desta declaração dos Direitos Humanos? Antes víamos a inteira população de um Estado ser tratada de forma desumana inexistindo qualquer ação para conter tais atos; agora vemos a cobrança por um genocídio, clamando por uma penalidade, em seu pleno alcance; via-se a tortura dos cidadãos, agora há a proibição de tratamentos desumanos e uma cobrança forte sobre esta prática, visando sua inibição; outrora via-se Estados (nações) ignorando necessidades de seus governados, sob a égide de descumprimento de normas internacionais,; podemos hodiernamente falar em direitos à alimentação, a um ambiente, a uma vida decente (CASSESE, 1993, p.7).

Mas a Declaração Universal dos Direitos Humanos implicou evolução. Se antes o cidadão era protegido de forma agrupada, em sociedade, agora, fala-se numa individualização de garantias. Podemos, em decorrência disso, falar do estabelecimento consolidado das garantias que o Estado concede ao indivíduo, não interferindo em sua esfera privada, assegurando-lhe seu direito à vida e à segurança, à intimidade e à vida familiar. É reconhecido seu direito à propriedade privada, à manifestação livre de suas opiniões, à prática religiosa e da livre reunião para fins pacíficos (CASSESE, 1993, p.7).

2.1 Autodeterminação na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789


Vamos pesquisar se encontramos na Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, preceito que poderia fundamentar o direito de decisão. Encontramos na Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, preceito que fundamenta o direito de decisão, em seu artigo 4º. estabelecendo que

A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei. (MELLO, 2003, p.39).


Destacamos do enunciado acima o âmbito da liberdade, chamando atenção para o fato da proteção das decisões dos indivíduos, em face de arbitrariedades dos governantes ou da sociedade. Também restou patente que os limites das decisões que tenham pertinência à própria pessoa (autodeterminação) somente encontrarão óbice se refletir em obliteração nos direitos da sociedade. Fora destes limites, não se admitiria plausível a alguém determinar conduta a outrem.

2.2 Autodeterminação na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793


Igualmente necessário sondar legitimação para conceder a liberdade de decisão aos indivíduos no instrumento de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, também francês. Analisando seus preceitos, defrontamo-nos com o disposto no art. VI, estipulando que
A liberdade é o poder que pertence ao Homem de fazer tudo quanto não prejudica os direitos do próximo: ela tem por princípio a natureza; por regra a justiça; por salvaguarda a lei; seu limite moral está na máxima: - “Não faça aos outros o que não quiseras que te fizessem”. (MELLO, 2003, p. 41).

Ratifica-se o entendimento de que os limites de decisão e de ação de uma pessoa são o potencial de dano ou da liberdade de outra. Pode-se decidir tudo que não danifique ou restrinja a liberdade de outro ou da sociedade.


2.3 Autodeterminação na Declaração Universal dos Direitos Humanos


O artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos abre, elencando os princípios deste histórico instituto, que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade” (MELLO, 2003, p.65).

Novamente encontramos o ideal de liberdade de ação, reconhecendo a característica humana da razão e tutelando a dignidade da pessoa humana. Mas o art. XII traz uma reserva de ação que nos interessa de modo especial. Vejamos:

Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Concede, o artigo XII, ampla liberdade ao indivíduo para decidir e agir, vedando o cerceamento às decisões ou atos sobre si mesmo. Desta maneira, consolida-se um quadro que pode ser assim resumido: a autodeterminação encontra tutela em todas as três declarações de direitos humanos; os limites, quando existem, buscam preservar a incolumidade pública e evitar prejuízos a outros. Por corolário, não há qualquer óbice do indivíduo decidir sobre sua própria vida se apenas ônus existirem, ou seja, se os reflexos serão sofridos e arcados pela própria pessoa.

Poderia, então, um paciente decidir não realizar determinada terapia, mesmo comprometendo sua vida? Analisando as declarações de direitos humanos, não encontramos qualquer empecilho neste sentido. Ao contrário, verificamos que ele pode, sim, optar por submeter-se ao tratamento ou simplesmente ignorá-lo. Pode, ainda, solicitar as alternativas ou recolher-se para sua casa. Não vemos fundamento para determinar que um paciente, acometido por câncer, deva ser forçado à quimioterapia se não desejar sofrer os efeitos colaterais. É uma opção sua. O exercício da autodeterminação encontra-se plenamente resguardado. O mesmo ocorre quando o paciente deseja as alternativas às transfusões sanguíneas; inexistindo estas ou, ainda, não sendo estas eficazes, resguarda-se a recusar as transfusões, sob fundamento de afronta à dignidade da pessoa humana.


3 AUTODETERMINAÇÃO SOB A BIOÉTICA


No presente capítulo abordaremos os temas conexos com a prática da medicina, o que atrairá a consideração atinentes à bioética, seus desafios e limites para a medicina, suas definições e seus princípios. Direitos do médico e do paciente são de especial interesse pelo objeto deste trabalho bem como a forma de efetivação da vontade do paciente considerando os dispositivos constitucionais, infraconstitucionais e os constantes no Código de Ética Médica.

3.1 Ética e Bioética


O uso freqüente que se faz destas palavras, mais recentemente, do termo ‘Bioética’ vem causando uma aplicação indevida, o que será explanado no sub-tópico que leva este nome.

3.1.1 Ética


Por mais utilizado que seja no vocabulário corrente, faz-se mister analisar o termo “ética” a fim de estabelecer o pacto semântico nesta obra, evitando desvios que o vernáculo propiciaria sem este cuidado.

Ensina-nos Guy Durant que a “palavra ‘ética’ origina-se do grego (éthos) e se refere aos costumes, à conduta da vida, às regras do comportamento” (1995, p.13) ressaltando que etimologicamente analisado, implica sinônimo da palavra ‘moral’. De fato, o Dicionário Caldas Aulete (1974, p.1482) apresenta-nos o vocábulo como sendo um singular feminino de origem grega ‘ethike’ traduzido para o vernáculo por mora e que tem sido empregada por diversos autores, tal como Guy Durant (1995, p.13) de forma sinônima ensinando-nos que abrange três conceitos:

  1. A pesquisa de normas ou de regras do comportamento, a análise dos valores, a reflexão sobre os fundamentos dos direitos ou dos valores.
  2. A sistematização da reflexão. (...)
  3. A prática concreta e a realização dos valores.


Outro sentido da palavra ‘ética’ é empregada hodiernamente como sendo “’a ciência do bem e do mal’, ou a ‘ciência da moral’. Ou, ainda, se limita ao estudo dos fundamentos da moral” (DURANT, 1995, p. 14).

Visando, por fim, estabelecer um parâmetro razoável, adotemos os conceitos apresentados por Guy Durant para estes três termos, afirmando que

A palavra moral é freqüentemente percebida de um modo negativo; ela lembra uma abordagem tradicional, fechada, religiosa. A palavra ética nos envia a uma nova análise, a uma abertura de espírito, a uma perspectiva não-religiosa. Quando à palavra deontologia, ela faz pensar espontaneamente em regras práticas, em obrigações concretas; ela lembra a idéia de um código adotado por uma autoridade impondo-se quase juridicamente aos membros de uma corporação”. (1995, p.16).

Como vemos, Guy Durant procurou exprimir no enunciado, de forma sintetizada, o corrente uso e idéia que cada uma das palavras – moral, ética e deontologia - transmite.

Daury Cesar Fabriz, ao enunciar sobre a ética, ensina que “devemos entender o vocábulo Ética, com consonância com o pensamento de Moore, como aquilo que é bom em si mesmo; […]. Tudo aquilo que se opõe à indignidade vislumbra-se como ético” (2003, p.77). Quando se ventila assuntos como a experimentação científica em seres humanos, traz-se à baila a afetação da dignidade humana (2003, p.85). Mais adiante, assevera-nos que “a problemática de toda ética contemporânea se insere no respeito à dignidade da pessoa humana” (2003, p.102).

Não há como tratar de ética sem que lancemos olhares sobre a dignidade da pessoa humana para obter balizas para as ações científicas que visam melhorar a vida do homem. Conforme podemos apreender dos enunciados acima, percebe-se claramente o estabelecimento de limites para aplicação das descobertas tecnocientíficas sob os olhares do princípio da dignidade da pessoa humana.

3.1.2 Bioética


O uso do termo ‘bioética’ não se dista muito na cronologia da história jurídica. Seu uso foi inicialmente efetuado mediante proposição do biólogo Van Rensselaer Potter, em 1970 com um artigo intitulado “Bioethics: the Sciense of Survival” e, logo no ano seguinte, com o livro ‘Bioethics: Bridge to the future’ externando o valor da biociência para a sobrevivência humana, possuindo, por sua importância, uma abrangência interdisciplinar. Aplicou o termo para se reportar aos conhecimentos dos sistemas de viventes em consonância com os sistemas de valores humanos (bio+ética) (FABRIZ, 2003, p.73). Assevera, o autor, ainda, que a bioética abarca estudos sobre a conduta humana e as influências e riscos que se submete quando aplicados os avanços biomédicos e tecnocientíficos (2003, p.75). Deixou transparente neste enunciado que a bioética tem como objeto, portanto, analisar e registrar os perigos que os avanços tecnológicos, principalmente na área da biociência, representa para a própria humanidade.

Por fim, Guy Durant propõe que “a bioética é a pesquisa de soluções para os conflitos de valores no mundo da intervenção biomédica, conflitos que deverão ser resolvido pela interposição de uma hierarquia destes, ante uma visão de mundo e uma visão antropológica fundamental” (1995, p.22) e, prosseguindo, assevera que deve inserir “o respeito concreto e a proteção às pessoas; sua liberdade, sua inviolabilidade e qualidade de vida” (1995, p.25). Mais adiante em suas considerações, este autor volta a se referir à vida quando propõe um rol de temas inclusos no objeto de estudo da bioética, dos quais destacamos “a eutanásia, obstinação terapêutica, recuperação, verdade aos doentes, direito à morte;[...]” (1995, p.27).

De especial interesse para o presente estudo é a dimensão que a bioética objetiva, conforme elucidado pelo próprio Guy Durant, descrevendo que “a bioética se preocupa com os casos individuais. Ela se relaciona assim com a decisão pessoal do paciente e daqueles que o rodeiam, seu diálogo e, finalmente, com a decisão final“ (1995, p.28). Este âmbito de abordagem é denominado de microética, em oposição à macroética que trata do “equilíbrio dos direitos, pelas estruturas sociais e legais a serem situadas, enfim, pelas condições estruturais da promoção das pessoas e das sociedades, por categorias sociais, econômicas, políticas e culturais das decisões pessoais”(19995, p.28).

Assim, notamos que o ato da escolha conscientemente de um paciente na recusa às transfusões de sangue e suas implicações estão inseridas no objeto da bioética. Justifica-se, portanto, uma análise mais apurada desta interessante ciência, dentro de nossos estudos, o que nos propomos a fazer no próximo tópico.

3.1.2.1 Princípios da Bioética


Vimos a importância da Bioética para a preservação de padrões salutares de investigação científica considerando o atual estágio de pesquisas científicas aplicáveis à medicina. Passaremos a abordar neste tópico a consideração de elementos norteadores da própria Bioética, adotando a corrente principialista, ou seja, passaremos a estudar cada um dos princípios que estabelecer-lhe-ão seus necessários limites.

3.1.2.2 Princípio da beneficência


Considerando tal princípio, Daury Cesar Fabriz (2003, p.108) preconiza que sua finalidade será a de estabelecer um norte, uma referência, um alvo, para o legislador, ou, como denominou, o “normatizador jurídico”, que, olhando para a bioética, estabelecerá as normas que concedam “direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa, aos médicos e pacientes, bem como ao Estado” estabelecendo condutas que propiciem o “bem-estar da clientela” . O autor, ao prosseguir, cita Fátima de Oliveira, advertindo que nas circunstâncias em que se exige a escolha entre o bem-estar da pessoa ou os interesses da sociedade e da ciência, o primeiro prevalecerá. De fato, opção inversa abriria oportunidade de utilização do indivíduo como mero instrumento científico. O homem estaria ocupando ora o lugar de beneficiário, ora o papel de ferramenta da biociência.

Podemos concluir que, se até mesmo quando os interesses da sociedade e da ciência estão em jogo estes são superados pelos interesses do indivíduo, uma vez que o princípio da dignidade prepondera sobre aqueles interesses. Por sua vez, tanto mais o médico deve observar a vontade do paciente quando este recusa uma terapia, pois, também, sua dignidade está em questão devendo prevalecer já que é o valor supremo no ordenamento jurídico.

3.1.2.3 Princípio da autonomia


O princípio da autonomia estabelece que todos são responsáveis por seus atos, sendo estes, por sua vez, fruto de sua livre escolha. Daury Cesar Fabriz defende que “devem-se respeitar a vontade, os valores morais e as crenças de cada pessoa” (2003, p. 109).

Guy Durant tratou deste assunto sob o tópico de “autodeterminação da pessoa” lembrando-nos que “ela constitui um primeiro princípio fundamental, ainda que nem todos assim interpretem” (1995, p.32s) e, para justificar o princípio, cita duas razões: primeira, porque tem conexão com a dignidade humana. Note-se que ele não se referiu ao princípio da dignidade humana mas, sim, diretamente à dignidade da pessoa, lembrando que “a pessoa, não é uma coisa, nem um objeto para o qual se determina um comportamento, mas é livre para assumir o seu destino” (1995, p.33); segunda, a existência de uma espécie de contrato entre o médico e seu paciente, entre o pesquisador e o ‘objeto’, exigindo-se uma relação de confiança. O paciente deposita a confiança no médico que, em contra-partida, não pode agir como soberano,como absoluto e senhor do paciente que lhe procurou. Guy Durant é bastante enfático ao abordar esta situação lembrando que “quando o paciente confia em um médico, ele não renuncia a sua autonomia, ele não se dirigiu a um grande feiticeiro que decidirá por ele. Ele simplesmente precisou de um especialista que o ajudasse a resolver seus problemas” (1995, p.33).

Do que já foi exposto até aqui, podemos fazer uma reflexão. Uma primeira consideração é concernente ao caráter do princípio, sendo defendido como o primeiro ou principal na bioética. Depois, podemos refletir nas conseqüências da decisão. O processo decisório nas situações de consentimento ou recusa não é fácil, pois, enquanto pode implicar um benefício por um lado, traz consigo o ônus pelo que decidiu, uma vez que suportará, ele mesmo, as conseqüências de sua decisão, sendo sua a vida que está em jogo, ele é quem sentirá as dores que lhe acometerão. Pode parecer, prima facie, redundante e óbvio o que afirmamos, mas se faz necessário para fins de ênfase e reflexão. Explícito resulta entender por que Guy Durant nos lembrou de que o paciente, ao procurar um médico, não está abdicando de sua autonomia!

Quando falamos em autodeterminação, deve se pressupo a escolha em virtude de uma situação, um conflito fático: o paciente aceita a terapia ‘a’ ou a terapia ‘b’ que, por serem diferentes, implicarão em graus de benefício, riscos e custos distintos. Os custos podem ser de ordem financeira ou moral/ética.

Os riscos estarão ligados à sua situação de saúde. Por tal razão, é imprescindível ao paciente indagar sobre estes, em relação a sua saúde, quando analisa se aceita ou recusa alguma terapia podendo, até mesmo, rejeitar todas, em face dos efeitos colaterais, chances de cura, questões de estética, ou razões de foro íntimo.

Imaginemos, para exercício de argumentação, que um paciente acometido por um tumor. A quimioterapia lhe estará a serviço, mas trará pesados efeitos colaterais e estéticos que somente o paciente poderá decidir se deseja pagar tal preço. Pode preferir não submeter-se ao tratamento. Cabe somente a ele decidir, mesmo que implique uma antecipação de sua morte. Não há como vislumbrar que o médico, o diretor do hospital ou, ainda, a clínica, após informá-lo de sua situação e as terapias disponíveis, avancem sobre seu corpo e submetam-no à quimioterapia ao arrepio de sua vontade. Seria violação aos princípios da autodeterminação e da dignidade da pessoa humana. Tal paciente estaria sendo tratado como uma ‘coisa’ fazendo referência ao termo utilizado por Guy Durant, conforme mencionado linhas acima. Defendem alguns que, estando a vida em risco, estaria o médico autorizado a realizar a transfusão de sangue, mesmo tendo o paciente se recusado a tal procedimento. Tal assertiva nos remete a considerar o princípio do respeito pela vida.

Avançando em nossa consideração, importante abordarmos outra faceta do princípio da autonomia ou autodeterminação. Trata-se do consentimento substitutivo, ou seja, aquele que diz respeito a pessoas juridicamente incapazes, tais como os menores, deficientes mentais e os permanente ou definitivamente inconscientes.

A solução é trazida por análise aos princípios éticos apresentados por Guy Durant, como: “procurar a vontade provável do doente; solicitar um tutor ou um amigo, agir no melhor interesse do doente, etc“(1995, p.36).

Neste espeque o ordenamento jurídico brasileiro estabelece os preceitos pertinentes, estabelecendo as formas e pessoas declaradas competentes para, em nome do titular, exercer as escolhas pertinentes. Não se fala em autodeterminação nestes casos, mas sim em consentimento substitutivo. Destaque-se que em momento algum cogitou-se em transferir tal autonomia ao médico. Aliás, de forma exemplificativa, Guy Durant elenca uma situação em que

Ante um menor, a maior parte das legislações atribuem a decisão aos pais ou tutores. No sentido ético pode-se, tanto quanto for possível, obter o conhecimento do jovem, principalmente se ele for adolescente [...] A mesma atitude é exigida normalmente para os deficientes mentais. [...] Com a pessoa em estado de coma pode-se perguntar se ela exprimiu, anteriormente, sua vontade de maneira explícita. Em caso afirmativo, se usa o tratamento. Caso contrário pode-se tentar encontrar a vontade presumida do doente com seus parentes. Em última instância pode-se escolher aquilo que parece atender melhor ao paciente, presumindo que isso fosse a sua vontade. (1995, p.36).


Concluímos, assim, que caberá ao paciente, ou a alguém conexo a ele, a decisão sobre qual terapia escolher, isto é, qual delas aceita e qual rejeita, prerrogativa que encontra amparo nos princípios da dignidade da pessoa humana e do livre consentimento ou da autonomia do paciente, estes decorrentes do princípio da autodeterminação. Apreendemos, de forma indubitável e explícita, que: a) a primeira escolha, cabe ao paciente; b) não podendo exprimí-la, cabe aos familiares, ao tutor ou, ainda, ao curador; c) não sendo possível aferir destas formas a vontade do paciente, apenas de forma residual a escolha será concedida ao médico.

Um último apontamento se faz necessário, visando fortalecer a motivação ou justificação do princípio da ‘autodeterminação da pessoa’, qual seja a de que a escolha – consentimento ou recusa – de uma terapia médica, tal como uma quimioterapia, cirurgia ou ainda, uma transfusão de sangue, deverá ocorrer de maneira consciente e motivada.

3.1.2.4 Princípio do respeito à vida


A preocupação em manter a vida do ser humano remonta aos primórdios da sua própria história, ou seja, desde que se ouve falar em humanidade, também ouve-se falar em proteção à vida, havendo variações de graus de proteção.

Na tradição das religiões sob direção da Bíblia, vemos logo no início de sua narrativa que puniu-se o assassinato, conforme encontra-se registrado no livro de Gênesis 4:1-16, quando Caim golpeou fatalmente Abel. Deus Jeová o puniu, mas, para que não se lhe tirasse a vida por vingança da vida de Abel, Caim recebeu a oportunidade de se manter refugiado. Mas tarde, quando Moisés recebeu a tábua com os dez mandamentos, um deles, registrado no livro de Êxodo 20:13 assevera: “Não deves assassinar” (BIBLIA, 1986, p.832 ).

Quando a moral e o direito se separaram da religião, o preceito de preservação da vida mediante punição do assassinato continuou merecendo importância destacada (DURANT, 1995, p.38). Mas, como devemos encarar a vida? Conforme tutelado pelos sistemas jurídicos? O que está envolvido quando nos referimos à vida humana?

Segundo Guy Durant (1995, p.38) existem quatro correntes distintas que preconizam, cada qual, seu conceito de vida. A primeira é denominada ‘Vitalismo’ e a declara sagrada devendo ser preservada mesmo quando sob condições frágeis, de risco; apenas Deus é o dono da vida. A segunda refuta o caráter sagrado da vida, admitindo até mesmo exceções à inviolabilidade da vida. A terceira contrapõe, em termos, o caráter sagrado da vida transformando-a em princípio e admitem sua relativização por ser um princípio fundamental, mas indeterminado. Por fim, a quarta corrente que, igualmente à segunda, recusa o caráter sagrado da vida, porém ressalta a importância da qualidade da vida.

No contexto médico, implica atribuir maior ou menor importância à vida por critérios de sua formação, chegando o citado autor, afirmar que, estando duas vidas em perigo, escolhe-se aquela de maior qualidade, por conter maior valor.

No contexto da natureza, ecologia e sociologia, visa-se a melhoria da qualidade de vida, isto é, a melhoria no ambiente exigindo empenho para oferecer proteção em todas as formas, facetas e etapas. Este segundo contexto também pode ser transferido para o ambiente da medicina, sob o qual, o alvo mediato é aquilo que pode ser melhorado não diretamente àquele paciente, mas sim, para o futuro. Sob este prisma, Guy Durant (1995, p.32) afirma que

em certos casos, poder-se-ia, então, concluir, que a melhor decisão – levando-se em conta o estado do doente, de seu sofrimento e das previsões – fosse cessar ou de não mais tentar um tratamento de urgência, que na realidade faria apenas prolongar uma agonia ou esticar uma vida biológica. Mas, também em outros casos, a decisão será de tentar prosseguir o tratamento se houver uma esperança razoável de controlar o sofrimento e de manter as funções normais da vida.


Enfim, o que se deve analisar é a possibilidade de oferecer maior conforto e bem-estar a todos os pacientes, mesmo os que não tem noção precisa de sua situação como os recém-nascidos e os deficientes mentais.

Apesar da corrente que se afilia ao enfoque da vida sob o prisma da ‘qualidade’ encará-lo diametralmente oposto ao caráter ‘sagrado’, Guy Durant entende que

é possível então unir o conceito de qualidade de vida com o princípio do caráter sagrado da vida. Em nossa opinião, não é necessário colocar as duas máximas como oponentes, mas considerá-las como complementares, ambas contribuindo para satisfazer as exigências éticas do respeito pela vida humana (1995, p.44).


Concluída a abordagem destes quatro espectros, voltemos à consideração do ‘princípio fundamental indeterminado’ para tecer um comentário indispensável neste estágio de nossos estudos.

Guy Durant (1995, p.40) lembrando que as religiões admitem que o homem recebeu de Deus parte do controle sobre os seres [inclusive sobre suas vidas] tendo a capacidade de entender e assumir as conseqüências de suas decisões. Reiterou ainda, que a ética filosófica não enxerga oposição entre o caráter sagrado da vida e a prática da legítima defesa. Expôs, de forma cristalina, uma evidência que não podemos nos furtar de aplicar. Destacou a capacidade e, ainda mais, a competência das decisões do indivíduo acerca de sua própria vida, e por decorrência, de seu próprio corpo. Não retirou esta competência nem a capacidade sequer nas circunstâncias de risco de vida. Raciocinou que “a prática médica, com efeito, não considera a vida como ‘tabu’ e as doenças, assim como os acidentes, como acontecimentos inesperados, reconhecendo nos seres humanos a responsabilidade própria sobre a vida e a morte”.

Assim, podemos afirmar que o paciente tem plena capacidade em escolher a terapia que deseja submeter-se – escolher significa aceitar ou recusar - cabendo ao médico o dever de informar ao paciente sua situação e as alternativas disponíveis, mesmo que ele, médico, não as domine. Afinal, cada médico atuará em sua área de especialização e, por isso, encaminhará o paciente ao profissional mais adequado, já que o paciente, quando saiu de sua residência e foi buscar um médico demonstra inegável interesse de obter tratamento, como muito bem notificou-nos o próprio Guy Durant, e que registramos a pouco.

Ademais, o princípio do respeito pela vida, como introdutoriamente considerado, visava primordialmente proteger os indivíduos dos assassinatos e não foi instituído para retirar o direito da livre disposição do corpo, tanto que não se pune o suicida, não obstante, punir-se aquele que instiga outrem ao suicídio3.

Não encontramos, por tal razão, fundamentação para retirar do paciente seu direito à autodeterminação, ou seja, impedir que possa dispor de seu próprio corpo, em qualquer situação. Por exemplo: determinado paciente se encontra acometido de um aneurisma e não aceita se submeter à intervenção cirúrgica apesar de recomendação médica neste sentido, mesmo sob advertência de que tal recusa pode custar-lhe a vida; o paciente entra em coma. Neste ínterim, o médico, desconsiderando sua vontade, procede tal intervenção cirúrgica, fundamentando-se no princípio do respeito à vida. Este médico interpretou de forma equivocada o princípio, eis que se dirige, primordialmente, contra aqueles que desejam ceifar a vida de outros culposa ou dolosamente, como demonstrado inicialmente. Assim, além de interpretar erroneamente este princípio, viola o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da autodeterminação ou da autonomia.


3.1.2.5 Princípio da justiça


Ensina-nos o Professor Daury César Fabriz (2003, p.111) que o princípio da justiça consiste na concessão equitativa e universal de disponibilização dos instrumentos do Estado para os serviços de saúde, na efetivação da cidadania, sendo coadjuvante do princípio da beneficência.

O princípio de justiça implica um tratamento de igualdade por parte do Estado e também um sentimento de sujeição coletiva para atingir um ideal comum, por isso tendo características estéticas diferentes em cada povo. Daury César Fabriz (2003, p. 236) nos assevera, neste sentido, que “cada comunidade humana deverá, a partir desse sentimento, construir democraticamente o seu conceito de justiça que seja mais apropriado ou adequado aos seus anseios, aplicável às suas próprias demandas”.

Deve, então, sob as normas Constitucionais, buscar-se pelos princípios de justiça a fim de indicar a direção e os limites das relações sociais, bem como obter a formação dos parâmetros das práticas da bioética. Exorta-nos ainda o Prof. Daury Cesar Fabriz que “o poder de decisão médica deve aliar-se à justiça. É o que ocorre quando há um conflito entre a responsabilidade médica e a autonomia do paciente, ou de sua família, visando a proteção da vida” (2003, p.119).

3.1.2.6 Princípio da não-maleficência


O princípio da não-maleficência (primum non nocere) decorre do princípio da beneficência e, em linhas gerais, implica não provocar dano algum a outrem (FABRIZ, 2003, p.107). Sua aplicação mais imediata neste estudo dá-se com a observância do profissional da medicina em atender a vontade do paciente, abstendo-se em provocar-lhe qualquer mal, quer físico quer psicológico. Não há dificuldade em se verificar que tal princípio é frontalmente violado se ao paciente for ministrada terapia da qual se opõe de forma justificada, consciente e expressa.

3.1.3 Princípios da Bioética na recusa às transfusões sanguíneas


Podemos aprofundar a análise, escolhendo uma situação comum, em que, na raras vezes, há situações extremas, isto é, apresenta-se uma circunstância que contrapõe o direito à vida com o direito à escolha, e consequente recusa, a determinada terapia. Referimo-nos à escolha que os pacientes fazem, por alternativas às transfusões de sangue. Analisemos esta questão, a partir de um artigo escrito pelo Dr. A. Shander (2000, p.1) médico anestesiólogo do “The New Jersey Institute Englewood Hospital And Medical Center, USA, que tratará dos aspectos bioéticos nos tratamentos de pacientes que se recusam às transfusões de sangue, inclusive as Testemunhas de Jeová. Em considerações iniciais, este anestesiólogo invocou a necessidade de abordar os quatro princípios da bioética, a saber: 1) o princípio da justiça; 2) o princípio do respeito à autonomia do paciente; 3) o princípio do dano ou do malefício e, também, 4) o princípio do benefício. Estes princípios serão tratados no próximo sub-tópico, por motivos didáticos.

Após tratar de forma resumida cada um dos princípios acima enumerados, o Dr. Shander trouxe a origem dos conflitos da bioética, resumindo-o da seguinte forma: “La definición de bioética y la esencia de todos los dilemas éticos em la práctica clínica surgen de que siempre hay otras personas que no desean lo mismo que uno para si“ (2000, p.2) lembrando que a sociedade é, deveras, diversificada o que impede que o médico e o paciente compartilhem do mesmo sistema de valores, o que auxilia na compreensão da existência de conflitos entre a posição do paciente e do médico.

No caso das Testemunhas de Jeová, topificou o Dr. Shander, o conflito tem como gênese a convicção do caráter sagrado que a Bíblia atribui ao sangue, o que, pelo estrito cumprimento aos preceitos bíblicos, impede que um membro seu se submeta à tratamento que implique a transfusão de sangue, não obstante, aceitam alternativas como: expansores do volume de origem não humana, recuperadores de células, hemodiluição normovolêmica aguda, ‘by-pass’, circulação extra-corpórea, novos métodos cirúrgicos para o controle da hemostasia, drogas derivadas de sangue, albumina, hemoglobina, preparações para hemofílicos e, ainda, as novas terapias com oxigênio, o que, em sua opinião não é complexo, dando oportunidades de boa margem para terapias (SHANDER, 2000, p.2).

Todavia, o Dr. Shander apontou a raiz do conflito entre a vontade do paciente e a postura do médico expressando que “el problema está em que los pacientes rechazan las transfusiones sanguíneas y los médicos consideran a los pacientes Testigos de Jehová como a herejes em al catedral de la medicina“ (2000, p.2) lembrando que a postura dos médicos no passado era, conforme termo que utilizou, muito paternalista pois diziam “debes recibir sangre, de outra manera no sobrevivirás” (2000, p.2) ou ainda, depreciavam a postura dos pacientes indagando que tipo de religião é esta que permite que seus membros morram? E, por isso, recorram, os médicos, ao sistema legal em busca de coerção para aplicar a transfusão de sangue à revelia da vontade do paciente, mostrando que não se preocupava com ele.

A postura mais ética recomendada e aplicável seria transferir este paciente para um médico que venha a acatar a vontade do enfermo, lembrando que “el sistema de valores próprio del médico debe manterse em mente, pero reservarlo para su vida privada, no para su vida profesional(SHANDER, 2000, p.3).

Hodiernamente, o que ocorre em tais casos é que o paciente acaba por ser abandonado sob os protestos do médico que raciocina sobre a posição do cliente e reage argumentando que se o paciente recusa a transfusão de sangue nada mais poderá ser feito por ele. O Dr. Shander (2000, p.3) todavia, chama atenção para o fato de que o paciente, ao informar sua decisão de recusa à transfusão de sangue em sua terapia, passa a ser vítima de omissão do médico, não pelo fato de que não se lhe administra sangue, mas pelo fato de que o médico não lhe oferece nenhum tratamento alternativo. Contudo, alerta que os direitos do médico podem até justificar uma desconsideração pela vontade do paciente quando tal decisão apresenta-se pouco razoável. Exemplificou ilustrativamente com a hipótese de uma paciente com 95 anos portadora de demência cujos familiares procuram num hospital intervenção médica para transplante de coração. Isto parece pouco razoável e pode ser recusado, conclui. Mesmo assim, esta família pode recorrer a outro médico, para fazer prevalecer a vontade do paciente.

Todavia, podem ocorrer diferentes situações que se distanciam dos casos padrão, ou seja, há situações extremas, em que uma decisão deve ser tomada em circunstâncias distintas, como as seguintes: primeiro, a do menor que necessita de cirurgia. Há duas variantes, neste caso: primeira, a do menor que, juridicamente é incompetente, mas é capacitado para exprimir sua decisão; a segunda, do menor que não usufrui ainda de capacidade para exprimir sua decisão. São ambas circunstâncias distintas daquela em que é um adulto que toma a decisão de rejeitar a transfusão de sangue e ainda, deixa esta vontade expressa em documento revestido das formalidades para produzir todos os efeitos legais.

Continuando seu raciocínio, esclarece o Dr. Shander que, nos Estados Unidos, o adulto usufrui de autonomia e, em decorrência, lhe é conferido o direito de recusar determinada terapia ou cuidado médico, conservando-se a integridade corporal da pessoa. Reserva-se, portanto, ao adulto, a prerrogativa de recusa de terapia que põe em risco um membro de seu corpo ou ainda um órgão vital.

Em seguida o Dr. Shanders expressa que a decisão do paciente é feita com base fundamentada nas informações que o médico lhe dá. Estas informações, ao passo que constitui um direito do paciente, também implica uma obrigação do médico, com gênese na manifestação de vontade, que resulta num fator determinante para o médico, como se denota na expressão: “Estos son los dos elementos del consentimiento informado en el cual el consentimiento es dado o negado sin derecho a apelar por parte de los clínicos” (2000, p.3).

Se o paciente tem o direito de ser informado e o médico tem o dever de informar sobre as terapias necessárias e métodos disponíveis e sobre os riscos e benefícios de cada um, para que o paciente se manifeste de forma inequívoca acerca de sua escolha – pois como corolário, entendemos que é do paciente a prerrogativa de escolha, pela linha de abordagem aqui traçada pelo Dr. Shanders. Qual seria a conseqüência em caso de inobservância por parte do médico à vontade do paciente? O próprio parecerista responde-nos que

Las consecuencias de la ruptura del consentimiento tienen el mismo peso que temas tan sérios como la idolatria, la falsa adoración, el adulterio o la inmoralidad sexual. La administración desmedida de sangre puede ser moralmente equivalente a una violación (2000, p.3).

De fato restou demonstrado que o Dr. Shanders tem em mente os aspectos religiosos e morais envolvidos. Morais, quando relaciona à questão a imoralidade sexual e o adultério; religioso, quando o relaciona à prática de idolatria e falsa adoração. Aplicando seu posicionamento, podemos dizer que obrigar o paciente a receber uma transfusão de sangue contra sua vontade equivale a submetê-lo a uma relação sexual contrário à seu consentimento, isto é, sujeitá-lo a um estupro.

Inicialmente, abordou a questão de um adulto com capacidade de exprimir sua vontade, mas, qual procedimento adotar quando uma paciente obstétrica exprime sua recusa? Afirma-nos o Dr. Shanders que "los pacientes obstétricos tienen los mismos derechos que cualquier adulto competente" (2000, p.3) e cita-nos o exemplo de uma mulher que está grávida e recusa um tratamento para que o feto venha a sobreviver, sendo enfático ao afirmar que "El Estado debe preservar el derecho a la vida del niño y además el derecho de autonomia del paciente, siendo esto imposible" (2000, p.4) tendo determinado a Suprema Corte dos Estados Unidos determinado que o Estado não pode desrespeitar a competente decisão da mulher grávida, tendo esta,ainda, julgado serem as transfusões sangüíneas procedimentos invasivos, pois violam a integridade física do adulto não competente.

Em decorrência destes posicionamentos judiciais, a Associação Médica Americana (AMA - American Medical Association) e a Faculdade Americana de Obstetrícia e Ginecologia estabeleceram procedimento padrão devendo-se enfrentar o problema de forma objetiva e que não se justifica recorrer à Corte para dirimir tais litígios, observando, ademais, o Dr. Shanders, que mais nenhuma petição, deveras, foi apresentada, visando obter autorização judicial pois as que vinham sendo apresentadas buscavam o ataque ou a agressão à vontade do paciente o que estaria violando o consentimento informado (2000, p.4).

Conclui o anestesiólogo, esta consideração, por apresentar os seguintes itens a observar: a) tanto para os casos dos filhos das Testemunhas de Jeová como para os pacientes pediátricos, há que se considerar a capacidade de decisão do menor; b) considerar a efetividade e os riscos do tratamento, neste caso, não importando se o paciente é menor ou não.

Portanto, conclui o Dr. Shanders: "si la vida del niño está en peligro los padres deben si se requiere" (2000, p.4). Este é um caso em que o médico substituirá, a seu ver, a vontade do paciente e dos responsáveis. Em outra situação, o médico deve respeitar a posição do paciente, como no caso de um menino de quatorze anos que se sabia estar compreendendo as implicações de um determinado tratamento; outro, em contraposição, de três anos que negava-se a um simples tratamento à base de antibióticos para enfrentar uma meningite; outro paciente de dezessete anos que, portador de leucemia, rejeitou nova quimioterapia após duas tentativas, o que representaria um pequeno benefício a um alto custo. Assim, este médico exemplificou nestes três casos, as diferenças entre um menor com capacidade de decisão e um menor, com três anos, sem condições de decidir por si.

As circunstâncias no Chile, conforme explanação deste anestesiólogo, são similares às verificadas nos Estados Unidos (EUA), onde, se um jovem cresce sob os ensinamentos das Testemunhas de Jeová e entende as implicações de suas decisões, pode ser considerado como um 'menor maduro' e deve ter suas decisões consideradas. Conclui: "Los pacientes tienen derechos legales y éticos para autodeterminar y decidir sobre su comportalidad" (SHANDERS, 2000, p.4).

No Brasil, verificamos que os hospitais invocam o Estatuto da Criança e do Adolescente para aplicar medidas de proteção à criança e ao adolescente, alegando omissão dos pais. Uma rápida análise, demonstrará que tal fato não está adequado à uma interpretação teleológica. O art. 98 preceitua que:

Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável
III – em razão de sua conduta.

Não podemos negar que a omissão dos pais pode ensejar a atuação do Estado, nomeando-lhe um tutor. Mas, a conduta dos pais que, detectando necessidade de tratamento médico de seu filho, leva-o a hospital e exigem o melhor tratamento, isento de riscos para restabelecer -lhe a saúde, não pode, de forma alguma, ser considerada conduta negligente, omissa. É diversa, esta conduta, daquela em que os pais, mesmo percebendo que o filho está enfermo, deixa-o em casa, acreditando em cura milagrosa ou simplesmente ignora a moléstia.

Um exemplo de que a escolha dos pais é pelo bem-estar do menor, afastando qualquer sentimento de fanatismo, foi salientado em reportagem exibida por uma rede de televisão brasileira, aos 09 de abril de 2004 (Globo Repórter), comprovando, em síntese, que: a) os pais, ao decidirem, buscam o melhor tratamento disponível, respeitando sua posição e desejando um tratamento que preserve a dignidade do menor; b) a medicina possui alternativas confiáveis; c) outros pacientes têm se beneficiado pelas pesquisas e avanços da medicina, em tratamento alternativo às transfusões reduzindo o risco que estas implicam.

Vimos, então, que a bioética, através da aplicação de seus princípios, protege de forma abalizada os direitos do paciente, ressaltando a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, resguardando, de modo inafastável, sua vontade.


CONCLUSÃO


Buscamos confrontar os Direitos Humanos para encontrar, num diálogo com a bioética, o alcance da autodeterminação. A questão enfrentada se refere ao direito do paciente escolher – aceitando ou recusando – determinada terapia para solucionar sua moléstia, quando o reflexo poderia provocar a perda da vida.

Abordando, inicialmente, a dignidade da pessoa humana, encontramos uma definição que abarca direitos e deveres do Estado e da comunidade para afastar qualquer ato humilhante ou degradante à pessoa humana, garantindo condições mínimas de existência. Também, verificamos que a dignidade decorre da capacidade de razão do ser humano, sendo o mais alto valor que o Estado deve tutelar.

A bioética protege, juntamente com o código de conduta ética dos médicos, o paciente para tomar decisões sobre seu próprio corpo. Assim, apuramos que o paciente deverá tomar conhecimento de sua situação física, saber quais são as alternativas de tratamento e, por fim, decidir qual aceita e qual recusa.

As principais declarações sobre Direitos Humanos protegem a liberdade da pessoa, inclusive de decidir sobre si, vedando que outras pessoas, ou até mesmo o Estado, interfira em sua vida, salvo para proteger a sociedade ou terceiros.

Por fim que, excetuando-se as situações de risco de contaminação da população, não há fundamento nas Declarações de Direitos Humanos para retirar do paciente, quando decide de modo consciente e fundamentado, a escolha para submissão ou recusa à terapias ou cirurgias, mesmo sob risco de vida, uma vez que está em questão a dignidade de sua própria vida, valor maior que o Estado deve proteger.

REFERÊNCIAS


BARRETO, Ireneu Cabral. A convenção europeia dos direitos do homem anotada. 2.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999.

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1Mestre em Direito Constitucional e Especialista em Direito Processual Civil pela FDV/Vitória-ES. Diretor da Academia Brasileira de Direitos Humanos. Professor de Direito Constitucional. Advogado.
2Utilizou-se a Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas publicada pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, que baseou-se na versão inglesa de 1984.
3 Código Penal, art. 122: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça.”

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