DIREITOS
HUMANOS,
AUTODETERMINAÇÃO
E BIOÉTICA
Horst
Vilmar Fuchs1
SUMÁRIO
Introdução. 1
Dignidade da pessoa humana. 2 Autodeterminação sob a Declaração
Universal dos Direitos do Homem. 3 Autodeterminação sob a Bioética.
Conclusão. Referências.
RESUMO
Busca-se
delimitar, no presente estudo, os contornos da autodeterminação,
uma vez que, em situações extremas, se vislumbra que terceiros
substituam a necessidade do paciente pela de terceiros, sob argumento
de que deve, a qualquer custo, se preservar a vida. Inicialmente foi
apresentado o traço distintivo do ser humano, isto é, sua
capacidade de razão, sendo o fundamento para tal tutela a dignidade
da pessoa humana, consubstanciada na vigente Constituição Federal
Brasileira. Em seguida, foi analisada a autodeterminação sob a
ótica dos principais instrumentos de declaração dos Direitos
Humanos, a saber: as declarações francesas dos Direitos do Homem e
do Cidadão de 1789 e de 1793 e a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Nesta última, foi destacada a necessidade do afastamento de
interferência de terceiros nas escolhas que refletem sobre a própria
pessoa. Prosseguindo, foi analisada a interseção da
autodeterminação na bioética, observando os princípios da
beneficência, da autonomia, do respeito à vida, da justiça e da
não-maleficência. Estes princípios aplicam-se ao caso de recusa de
terapia, confrontando os direitos do paciente com a responsabilidade
e conduta ética do médico. Finalmente, chegou-se à conclusão de
que é possível, sob uma decisão consciente e fundamentada,
escolher e recusar terapias, desde que não reflita em danos a
terceiros e à sociedade.
PALAVRAS-CHAVE
Direitos
Humanos. Declaração Universal. Constituição. Dignidade. Pessoa
humana. Autodeterminação. Liberdade. Tratamento médico.
Transfusões sanguineas.
ABSTRACT
One searchs to delimit, in the present
study, the contours of the self-determination, a time that, in
extreme situations, understands it necessity to substitute the will
of the patient for the reason of third, aiming at the preservation of
the life. Initially the distinctive trace of the human being was
brought to the attention, emphasizing its capacity of reason, being
the bedding for the guardianship of the dignity of the human being,
its definition and its protection in the Brazilian Federal
Constitution. After that, it was necessary to analyze the
self-determination under the optics of the main instruments of
declaration of the Human Rights, namely: French Declaration of the
Rights of the Man and the Citizen of 1789 and of 1793 and the
Universal Declaration of the Human Rights. In this last one, was
emphasized the removal of interference of third in the choices that
they reflect on the proper person. Continuing, we analyzed the
intersection of the self-determination in the bioethics, observing
the principles of the benefit, of the autonomy, of the life respect,
of the justice, in the not-slander. We apply these principles to the
case of therapy refusal, collating the rights of the patient with the
responsibility and ethics behavior of the doctor. Finally, was
concluded that it is possible, under a conscientious and based
decision, to choose and to refuse a kind of therapies, since that it
does not reflect in damages to a third person and to the society.
KEY WORDS
Human
rights. Universal Declaration. Constitution. Dignity. Human person.
Self-determination. Liberty.
INTRODUÇÃO
O
direito de decidir sobre sua própria vida, em todos os aspectos,
denominado autodeterminação, tem ganhado especial atenção no
mundo jurídico, e tem exigido estudos atualizados, por parte da
comunidade acadêmica. Especial desafio, desta questão, é responder
se há limites para que uma pessoa decida sobre si, quando esta
decisão pode comprometer sua integridade física. Imperioso estudar,
portanto, os contornos da dignidade da pessoa humana, especialmente,
sob o prisma das Declarações de Direitos Humanos. Interessa-nos,
como objetivo deste estudo, afirmar se há ou não um limite para que
um paciente decida sobre a terapia que deseja se submeter, podendo-as
recusar, mesmo que tal decisão coloque sua vida em risco. Poderia o
Estado substituir, nessas condições extremas, a vontade do
paciente?
A
abordagem exigirá uma análise no significado da dignidade da pessoa
humana e a importância de sua positivação em dado sistema
jurídico; toma-se por base o ordenamento jurídico brasileiro, já
que enuncia a proteção deste valor como fundamento do Estado. Em
seguida, será necessário verificar se tal direito está albergado
pelas diversas Declarações de Direitos Humanos.
Prosseguindo
as pesquisas, imprescindível verificar os conceitos da bioética, já
que o tema em análise encontra-se intimamente ligado a esta área do
direito. Verificaremos como os princípios da bioética podem
auxiliar na elaboração de uma proposta que apresente os contornos
da autodeterminação.
Desta
forma, será possível estabelecer, à luz das principais Declarações
sobre Direitos Humanos, dos conceitos da dignidade da pessoa humana e
dos princípios da bioética, os âmbitos e limites da
autodeterminação, quando está em jogo a própria vida humana.
1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Os
debates em torno da autodeterminação conduzem, invariavelmente, na
análise de casos extremos, na preservação da vida, atribuindo-se
ao Estado o dever de manter a vida de seu povo. Tal fato determina,
porém, uma análise sobre a mais importante característica do ser
humano: a racionalidade.
Assim,
passemos a abordar algumas definições sobre o Homo
sapiens, iniciando com a
conclusão do Professor Daury César Fabriz, após exaustiva
reflexão, afirmando que “O homem torna-se tema de si mesmo, objeto
de suas especulações, na busca do domínio do seu próprio destino
do mundo” e acresce ainda que
O
homem concede significado à sua própria existência no mundo. O
significado que o homem oferece a si mesmo advém da sua capacidade
racional de objetivar e construir toda a realidade que o cerca. O
conhecimento produzido pelo homem proporciona sempre um novo
significado à sua existência; uma existência que a todo momento se
encontra em reconstrução
(2003, p. 49).
De
fato, vemos que o homem modifica seu meio, seu habitat, ao utilizar
seu potencial psíquico. O mundo é alterado e esta mudança, por sua
vez, provoca outras, num ciclo infindável. Isto é facilmente
detectado pela análise da história, mesmo quando se verifica um
curto período de tempo.
Mas,
o que desejamos destacar, ainda mais do que as mudanças de ordem
puramente material, são as de ordem social e moral, somente
possíveis ao ser racional pois “O significado que o homem oferece
a si mesmo advém da sua capacidade racional...” Eis o que estamos
a salientar: a racionalidade, que é ímpar, concedida ao ser humano
e que “proporciona sempre um novo significado à sua existência...”
(FABRIZ, 2003, p. 49).
Refletindo
sobre o tema, o Professor Daury César Fabriz, ao buscar a perfeita e
consagradora definição do tema tratado neste tópico, concluiu: “O
Homem é aquilo que o seu conhecimento pode indicar que ele é”.
Extraia-se desta expressão a natureza não física, mas mental,
psíquica, tendo por corolário que a qualidade de raciocínio
inerente no homem não é apenas um diferencial, mas elemento
principal. Basta indagar se uma pessoa que possui um físico,
resultando num ser cabalmente debilitado deixaria esta de ser um
homem, um ser humano? Não haveria quem defendesse uma resposta
afirmativa.
Tomemos
outro exemplo, a de uma pessoa gravemente enferma, inapta a
locomover-se e - para se chegar a um caso extremo - sem condições
de se alimentar por seus próprios movimentos, necessitando a todo
tempo de ajuda até mesmo para as atividades mais simples. Ainda
assim seria inconcebível retirar-lhe sua dignidade qual ser humano.
Também, por esta razão, ninguém ousaria tirar a vida de uma pessoa
pelo simples fato de estar fisicamente debilitada.
A
conclusão acima nos leva a verificar que, para a vida do homem ser
significativa, vivida a contento, tornar-se-á necessária a
instituição de direitos fundamentais baseado na condição do homem
sob os aspectos dele como pessoa, cidadão, trabalhador e
administrado, sendo irrenunciável sua individualidade (1999, p.
248).
O
respeito à integridade física, psíquica e moral encontra-se
inserido no princípio da dignidade humana conforme muito bem tratado
pelo Dr Daury Cesar Fabriz mencionando que “Em decorrência desse
princípio, ninguém poderá ser submetido a torturas ou tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes; da mesma maneira que ninguém
poderá arbitrariamente ser detido, preso ou desterrado,
assegurando-se a liberdade de pensamento e culto religioso” (2003,
p.273).
Nota-se
que o respeito à dignidade da pessoa humana transcende os limites do
físico, do corpo humano, uma vez que abarca também o culto
religioso e a liberdade de pensamento, o que se verifica ao analisar
diversos incisos do artigo 5o.
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como os
que excertamos abaixo:
VI
- é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na
forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII
- é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência
religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII
- ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa
ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir
prestação alternativa, fixada em lei;
IX
- é livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença;
X
- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material
ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo
inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial; [...]
Há
outros, mas, como afirmamos, nosso objetivo foi trazer exemplos para
tornar visível a preocupação do constituinte em preservar a
dignidade da pessoa humana trazendo, inclusive, direitos
fundamentais, de caráter físico (corpo, incisos VIII, X e XI),
psíquico (liberdades de consciência e de expressão, incisos VI,
VIII, IX e X) e espiritual (liberdade religiosa, incisos VI, VII e
VIII).
Não
há como prosseguir em nossos estudos, no entanto, sem enfrentar o
que vem a ser vida humana o que nos leva a abordar o tema “pessoa
humana” e todos os elementos de sua dignidade.
A
vida humana é o ápice da proteção do direito, sua maior
preocupação, a ponto de propulsionar, invariavelmente, as melhorias
dos ordenamentos jurídicos. Tomemos como exemplo o Código Penal
Brasileiro que, abrindo a Parte Especial, em ser art. 121, estatui:
Matar alguém: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
O
intuito da pena é de preservar a vida. Mas a Constituição Federal
traz ainda outros exemplos de preservação da vida, sendo a tutela
maior a ser oferecida à população, a saber: o art. 5o.
caput:
- Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...
Nos
aprofundaremos mais para apurar os significados e abrangências deste
dispositivo constitucional, mas por ora, visamos demonstrar a
preocupação de Nossa Carta Maior em defender o direito à vida,
encabeçando um rol de direitos e garantias individuais e coletivos.
Abordando
os direitos e liberdades, a ilustre professora Suzana de Toledo
Barros (2003, p. 131s), que também colaborou nos trabalhos da última
Assembléia Nacional Constituinte, classifica-os em quatro
categorias, ordenados em ‘gerações’, sendo: 1a.
a liberdade religiosa; 2a.
as liberdades civis, políticas e sociais; 3a.
dos direitos difusos de natureza transindividual e, por fim; 4a.
dos direitos ambientais.
Pela
análise realizada acima, pode-se afirmar que a dignidade da pessoa
humana tem uma amplitude que transcende os limites físicos. De fato,
o professor Dr. Daury César Fabriz manifesta conclusivamente que “A
dignidade da pessoa humana expressa-se como corolário de todo
arcabouço ético de uma sociedade” (2001, p. 275).
Certamente,
esta conclusão encontra guarida na Constituição brasileira,
ganhando destaque, ao ser mencionado como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil, pois vejamos:
Art.
1° A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos:
I
– a soberania;
II
– a cidadania;
III
– a
dignidade da pessoa humana;
IV
– os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V
– o pluralismo político. (grifos acrescidos).
Constituindo
a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República
Federativa resulta em apurarmos a importância desta no sistema
jurídico brasileiro. Esta constatação conduzir-nos-á a pesquisar
qual nível ocupa, em relação aos demais valores que busca este
tutelar.
1.1
Posição ordinal da dignidade da pessoa humana no ordenamento
jurídico
Comentando
o preceito, Uadi Lammêgo Bulos ressalta a importância da dignidade
da pessoa humana neste rol de fundamentos, afirmando que
A
dignidade da pessoa humana é o valor
constitucional supremo
que agrega em torno de si a unanimidade dos demais direitos e
garantias fundamentais do homem, expressos nesta Constituição. Daí
envolver o direito à vida, os direitos pessoais tradicionais, mas
também os direitos sociais, os direitos econômicos, os direitos
educacionais, bem como as liberdades públicas em geral. [...] A
dignidade da pessoa humana, enquanto vetor determinante da atividade
exegética da Constituição de 1988, consigna um sobreprincípio,
ombreando os demais pórticos constitucionais, como o da legalidade
(art. 5°, II), o da liberdade de profissão (art. 5°, XIII), o da
moralidade administrativa (art. 37) etc. Sua observância é, pois,
obrigatória para a interpretação de qualquer norma constitucional,
devido à força centrípeta que possui, atraindo em torno de si o
conteúdo de todos os direitos básicos e inalienáveis do homem.
(2001, p.49-50).
Uadi
Lammêgo Bullos reputou à garantia, ora em análise, o grau de
“carro-chefe dos direitos fundamentais na Constituição de 1988”
(2001, p.50) lembrando que a dignidade da pessoa humana encontra-se
prevista em diversos outros instrumentos constitucionais, como por
exemplo, na Lei Fundamental de Bonn de 1949 que teve efeitos
influenciadores na Constituição da Espanha de 1978, que em seu art.
1° reza: “A dignidade do homem é inatingível. Respeitá-la e
protegê-la é obrigação de todo poder público” (2001, p.50). O
poder constituinte português seguindo o exemplo, também assegurou
logo na abertura dos dispositivos constitucionais tal garantia.
O
alcance da dignidade da pessoa humana é defendido como sendo
absoluto, conforme argumentado por Fernando Ferreira dos Santos,
citado por Daury César Fabriz, pois afirma que “ainda que se opte,
em determinada situação, pelo valor coletivo, por exemplo, esta
opção não pode sacrificar, ferir o valor da pessoa” lembrando
ser este o “instrumento balizador dos demais princípios e direitos
compreendidos como superiores” e concluiu que “Se a vida é o
pressuposto fundamental, premissa maior, a dignidade se absolutiza em
razão de uma vida que somente é significativa, se digna” (2003,
p.275).
Concluímos
daí, que a vida humana somente terá sentido se vivida em dignidade,
por isso, transformado em requisito essencial para o exercício do
maior direito concedido ao ser humano.
J.
J. Gomes Canotilho (1999, p.243), ao tratar dos direitos
fundamentais, lembrou com muita propriedade que tais direitos criam
para o Estado um dever, denominado “Função” e tendo como a
primeira destas funções a de defender o ser humano das agressões
aos seus direitos fundamentais e, ainda mais, explanando-nos sobre o
que denominou ‘direitos de defesa’ sendo que estes, em dupla
perspectiva
(1)constituem,
num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para
os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências
destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano
jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos
fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes
públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos
(liberdade negativa). (1999, p. 243-244).
Exorta-se,
portanto, ver o princípio da dignidade da pessoa humana como
elemento intrínseco do ser, do existir humano. Abordaremos, a
seguir, como o homem pode esperar ver instituído e protegido
direitos que visem conceder-lhe um viver digno.
A
dignidade da pessoa humana é, como demonstrado, o mais alto bem que
pode ser tutelado, já que ultrapassa a preservação da vida,
estritamente considerada, atingindo a preservação dos valores do
ser humano. É uma das razões que trazem dificuldades para sua
conotação, uma vez que deverá delimitar seu alcance. Ingo Wolfgang
Sarlet (2004, p.573) enuncia que a dignidade da pessoa humana é
a
qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e
co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos.
Apreendemos,
da definição acima, após considerações dos elementos
constitutivos da dignidade da pessoa humana feitas pelo autor, que
esta, por ser complexa, atribui deveres ao Estado e,
concomitantemente, à comunidade, para proteger o indivíduo de atos
desumanos. Neste ponto já podemos concluir que a dignidade tem
conexão indissociável com a existência do ser, respeitando seus
valores, sua cultura, seus costumes. Há que se garantir também,
assevera o professor, condições mínimas de existência saudável
e, ainda, atingir a harmonia social.
1.2
Irrenunciabilidade
Para
chegarmos a uma conclusão devidamente fundamentada, parece-nos
imprescindível analisar se a autodeterminação é absoluta ou se há
condições ou circunstâncias que esta restará relativizada, isto
é, se podemos conceber condições ou limites para a
autodeterminação, ao que podemos definir como circunstâncias em
que se chega a irrenunciabilidade de direitos, valores ou bens
jurídicos.
Ingo
Wolfgang Sarlet (2004, p. 566) defende, na esteira de Martin
Koppernock, que
a dignidade, na sua
perspectiva assistencial (protetiva) da pessoa humana, poderá dadas
as circunstâncias, prevalecer em face da dimensão autonômica, de
tal sorte que, todo aquele a quem faltarem as condições para uma
decisão própria e responsável (de modo especial no âmbito da
biomedicina e bioética) poderá até mesmo perder – pela nomeação
eventual de um curador ou
submissão involuntária a tratamento médico e/ou internação
– o exercício pessoal de sua capacidade de autodeterminação,
restando-lhe, contudo, o direito a ser tratado com dignidade
(protegido e assistido)”. (grifos acrescidos).
Afirma-se,
por esta doutrina, que o homem pode perder a autodeterminação,
passando o poder decisório a outra pessoa: um curador ou o médico,
acima enunciado quando se faz referência a uma “submissão a
tratamento médico ou internação”.
Concordamos
como autor, porém, quando afirma, que “resta-lhe, contudo, o
direito a ser tratado com dignidade”. Mas discordamos, data
máxima vênia, da
possibilidade de submissão a tratamento médico involuntário. Tal
prática – obrigar o paciente a submeter-se a tratamento médico –
afronta todos os princípios pertinentes à dignidade da pessoa
humana, já que esta ignora a característica diferenciadora do ser
humano: a razão. Forçar uma pessoa a um tratamento médico ou
internação, quando este, quando no exercício de suas faculdades
mentais normais, manifestou-se em sentido contrário, é tratá-lo
como ser irracional, o que é inconcebível sob o atual estágio dos
direitos humanos.
2 AUTODETERMINAÇÃO SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS
A
história dos direitos humanos, cujos excertos servirão para nos
auxiliar a melhor visualiza, a evolução das liberdades, uma vez que
estão interligados por serem decorrentes que são dos direitos
humanos, mostra-se relativamente recente.
No
Século XIII tivemos a Magna Carga inglesa, mais precisamente em
1215, que resultou de um pacto entre o rei João-sem-terra e os
barões rebeldes. Tal instrumento já continha normas jurídicas para
proteger liberdades do povo em face da voraz atuação da Coroa.
Estas disposições, lembra-nos Ireneu Cabral Barreto (1999, p.22),
influenciaram documentos como The Petition of Rights (1628) e The
Habeas Corpus Act (1679).
Assevera
Antonio Cassese (1993, p.7) que no início do século XX, era comum
ver atrocidades serem praticadas contra o homem, tais como
discriminações e torturas. Tínhamos uma Itália fascista que
obliterava as liberdades de expressão e associação; os Estados
Unidos praticavam forte discriminação contra os negros. Em diversas
nações os índios eram explorados de forma desumana e a então
União Soviética reprimia de forma progressiva os direitos à
liberdade.
Pouco
antes, no século XVIII, para combater o desprezo pelos direitos
básicos do homem, surge na França, em 1789, a “Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão” que enunciava, desde seu
preâmbulo:
Os
representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional,
tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos
direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da
corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos
naturais, inalienáveis e sagrados do homem [...]
Frisamos,
em análise ao enunciado preambular desta nobre Declaração, que os
os direitos do homem, com raiz nos direitos naturais, tornaram-se
necessários em decorrência das atrocidades e das práticas
arbitrárias, assustadoramente comuns, dos governantes. Embora tenha
conseguido amainar a situação, estas continuaram ocorrendo. Ireneu
Cabral Barreto classifica esta declaração como a “formulação
clássica dos direitos invioláveis do indivíduo” (1999, p.22).
Num
movimento de constitucionalização dos direitos humanos, surgiu nos
Estados Unidos da América, em 1791, o Bill of Rights com os dez
primeiros princípios da constituição daquele país (BARRETO, 1999,
p. 22).
Veio
então a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948,
fornecendo não apenas um instrumento paritário, comum, de
relacionamento entre uma nação e outra, mas, um parâmetro de como
deveria o indivíduo ser tratado em uma sociedade, não atuando
apenas de forma universal, mas inserindo valores antes ausentes em
algumas constituições.
Não
obstante tais instrumentos declaratórios, víamos ainda a
desconsideração pelo que continham. Desta forma, comenta Ireneu
Cabral Barreto (1999, p.22), “nos Estados Unidos, por exemplo, a
sua Declaração de Independência consagrava a igualdade do homem,
mas só 80 anos mais tarde a escravatura foi abolida”. Olhando para
a Europa, similar fenômeno ocorreu, uma vez que, embora a Declaração
dos Direitos do Homem atribuísse liberdade a igualdade formal,
excluíram dela as mulheres, quando se tratava de direitos naturais
(BARRETO, 1999, p.23).
Mas,
a médio e longo prazo, qual foi o efeito desta declaração dos
Direitos Humanos? Antes víamos a inteira população de um Estado
ser tratada de forma desumana inexistindo qualquer ação para conter
tais atos; agora vemos a cobrança por um genocídio, clamando por
uma penalidade, em seu pleno alcance; via-se a tortura dos cidadãos,
agora há a proibição de tratamentos desumanos e uma cobrança
forte sobre esta prática, visando sua inibição; outrora via-se
Estados (nações) ignorando necessidades de seus governados, sob a
égide de descumprimento de normas internacionais,; podemos
hodiernamente falar em direitos à alimentação, a um ambiente, a
uma vida decente
(CASSESE, 1993, p.7).
Mas
a Declaração Universal dos Direitos Humanos implicou evolução. Se
antes o cidadão era protegido de forma agrupada, em sociedade,
agora, fala-se numa individualização de garantias. Podemos, em
decorrência disso, falar do estabelecimento consolidado das
garantias que o Estado concede ao indivíduo, não interferindo em
sua esfera privada, assegurando-lhe seu direito à vida e à
segurança, à intimidade e à vida familiar. É reconhecido seu
direito à propriedade privada, à manifestação livre de suas
opiniões, à prática religiosa e da livre reunião para fins
pacíficos (CASSESE,
1993, p.7).
2.1 Autodeterminação na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789
Vamos
pesquisar se encontramos na Declaração francesa dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789, preceito que poderia fundamentar o
direito de decisão. Encontramos na Declaração francesa dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, preceito que fundamenta o
direito de decisão, em seu artigo 4º. estabelecendo que
A liberdade consiste em
poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício
dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão
aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos
mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela
lei. (MELLO, 2003, p.39).
Destacamos
do enunciado acima o âmbito da liberdade, chamando atenção para o
fato da proteção das decisões dos indivíduos, em face de
arbitrariedades dos governantes ou da sociedade. Também restou
patente que os limites das decisões que tenham pertinência à
própria pessoa (autodeterminação) somente encontrarão óbice se
refletir em obliteração nos direitos da sociedade. Fora destes
limites, não se admitiria plausível a alguém determinar conduta a
outrem.
2.2 Autodeterminação na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793
Igualmente
necessário sondar legitimação para conceder a liberdade de decisão
aos indivíduos no instrumento de Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 1793, também francês. Analisando seus preceitos,
defrontamo-nos com o disposto no art. VI, estipulando que
A liberdade é o poder
que pertence ao Homem de fazer tudo quanto não prejudica os direitos
do próximo: ela tem por princípio a natureza; por regra a justiça;
por salvaguarda a lei; seu limite moral está na máxima: - “Não
faça aos outros o que não quiseras que te fizessem”. (MELLO,
2003, p. 41).
Ratifica-se
o entendimento de que os limites de decisão e de ação de uma
pessoa são o potencial de dano ou da liberdade de outra. Pode-se
decidir tudo que não danifique ou restrinja a liberdade de outro ou
da sociedade.
2.3 Autodeterminação na Declaração Universal dos Direitos Humanos
O
artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos abre,
elencando os princípios deste histórico instituto, que “todas as
pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas
de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras
com espírito de fraternidade” (MELLO, 2003, p.65).
Novamente
encontramos o ideal de liberdade de ação, reconhecendo a
característica humana da razão e tutelando a dignidade da pessoa
humana. Mas o art. XII traz uma reserva de ação que nos interessa
de modo especial. Vejamos:
Ninguém será sujeito a
interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou
na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação.
Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais
interferências ou ataques.
Concede,
o artigo XII, ampla liberdade ao indivíduo para decidir e agir,
vedando o cerceamento às decisões ou atos sobre si mesmo. Desta
maneira, consolida-se um quadro que pode ser assim resumido: a
autodeterminação encontra tutela em todas as três declarações de
direitos humanos; os limites, quando existem, buscam preservar a
incolumidade pública e evitar prejuízos a outros. Por corolário,
não há qualquer óbice do indivíduo decidir sobre sua própria
vida se apenas ônus existirem, ou seja, se os reflexos serão
sofridos e arcados pela própria pessoa.
Poderia,
então, um paciente decidir não realizar determinada terapia, mesmo
comprometendo sua vida? Analisando as declarações de direitos
humanos, não encontramos qualquer empecilho neste sentido. Ao
contrário, verificamos que ele pode, sim, optar por submeter-se ao
tratamento ou simplesmente ignorá-lo. Pode, ainda, solicitar as
alternativas ou recolher-se para sua casa. Não vemos fundamento para
determinar que um paciente, acometido por câncer, deva ser forçado
à quimioterapia se não desejar sofrer os efeitos colaterais. É uma
opção sua. O exercício da autodeterminação encontra-se
plenamente resguardado. O mesmo ocorre quando o paciente deseja as
alternativas às transfusões sanguíneas; inexistindo estas ou,
ainda, não sendo estas eficazes, resguarda-se a recusar as
transfusões, sob fundamento de afronta à dignidade da pessoa
humana.
3 AUTODETERMINAÇÃO SOB A BIOÉTICA
No
presente capítulo abordaremos os temas conexos com a prática da
medicina, o que atrairá a consideração atinentes à bioética,
seus desafios e limites para a medicina, suas definições e seus
princípios. Direitos do médico e do paciente são de especial
interesse pelo objeto deste trabalho bem como a forma de efetivação
da vontade do paciente considerando os dispositivos constitucionais,
infraconstitucionais e os constantes no Código de Ética Médica.
3.1 Ética e Bioética
O
uso freqüente que se faz destas palavras, mais recentemente, do
termo ‘Bioética’ vem causando uma aplicação indevida, o que
será explanado no sub-tópico que leva este nome.
3.1.1 Ética
Por
mais utilizado que seja no vocabulário corrente, faz-se mister
analisar o termo “ética” a fim de estabelecer o pacto semântico
nesta obra, evitando desvios que o vernáculo propiciaria sem este
cuidado.
Ensina-nos
Guy Durant que a “palavra ‘ética’ origina-se do grego (éthos)
e se refere aos costumes, à conduta da vida, às regras do
comportamento” (1995, p.13) ressaltando que etimologicamente
analisado, implica sinônimo da palavra ‘moral’. De fato, o
Dicionário Caldas Aulete (1974, p.1482) apresenta-nos o vocábulo
como sendo um singular feminino de origem grega ‘ethike’
traduzido para o vernáculo por mora e que tem sido empregada por
diversos autores, tal como Guy Durant (1995, p.13) de forma sinônima
ensinando-nos que abrange três conceitos:
- A pesquisa de normas ou de regras do comportamento, a análise dos valores, a reflexão sobre os fundamentos dos direitos ou dos valores.
- A sistematização da reflexão. (...)
- A prática concreta e a realização dos valores.
Outro
sentido da palavra ‘ética’ é empregada hodiernamente como sendo
“’a ciência do bem e do mal’, ou a ‘ciência da moral’.
Ou, ainda, se limita ao estudo dos fundamentos da moral”
(DURANT, 1995, p. 14).
Visando,
por fim, estabelecer um parâmetro razoável, adotemos os conceitos
apresentados por Guy Durant para estes três termos, afirmando que
A
palavra moral
é freqüentemente percebida de um modo negativo; ela lembra uma
abordagem tradicional, fechada, religiosa. A palavra ética
nos envia a uma nova análise, a uma abertura de espírito, a uma
perspectiva não-religiosa. Quando à palavra deontologia,
ela faz pensar espontaneamente em regras práticas, em obrigações
concretas; ela lembra a idéia de um código adotado por uma
autoridade impondo-se quase juridicamente aos membros de uma
corporação”.
(1995, p.16).
Como
vemos, Guy Durant procurou exprimir no enunciado, de forma
sintetizada, o corrente uso e idéia que cada uma das palavras –
moral, ética e deontologia - transmite.
Daury
Cesar Fabriz, ao enunciar sobre a ética, ensina que “devemos
entender o vocábulo Ética, com consonância com o pensamento de
Moore, como aquilo que é bom em si mesmo; […]. Tudo aquilo que se
opõe à indignidade vislumbra-se como ético” (2003, p.77). Quando
se ventila assuntos como a experimentação científica em seres
humanos, traz-se à baila a afetação da dignidade humana
(2003, p.85).
Mais adiante, assevera-nos que “a problemática de toda ética
contemporânea se insere no respeito à dignidade da pessoa humana”
(2003, p.102).
Não
há como tratar de ética sem que lancemos olhares sobre a dignidade
da pessoa humana para obter balizas para as ações científicas que
visam melhorar a vida do homem. Conforme podemos apreender dos
enunciados acima, percebe-se claramente o estabelecimento de limites
para aplicação das descobertas tecnocientíficas sob os olhares do
princípio da dignidade da pessoa humana.
3.1.2 Bioética
O
uso do termo ‘bioética’ não se dista muito na cronologia da
história jurídica. Seu uso foi inicialmente efetuado mediante
proposição do biólogo Van Rensselaer Potter, em 1970 com um artigo
intitulado “Bioethics: the Sciense of Survival” e, logo no ano
seguinte, com o livro ‘Bioethics: Bridge to the future’
externando o valor da biociência para a sobrevivência humana,
possuindo, por sua importância, uma abrangência interdisciplinar.
Aplicou o termo para se reportar aos conhecimentos dos sistemas de
viventes em consonância com os sistemas de valores humanos
(bio+ética) (FABRIZ, 2003, p.73). Assevera,
o autor, ainda, que a bioética abarca estudos sobre a conduta humana
e as influências e riscos que se submete quando aplicados os avanços
biomédicos e tecnocientíficos (2003, p.75). Deixou transparente
neste enunciado que a bioética tem como objeto, portanto, analisar e
registrar os perigos que os avanços tecnológicos, principalmente na
área da biociência, representa para a própria humanidade.
Por
fim, Guy Durant propõe que “a bioética é a pesquisa de soluções
para os conflitos de valores no mundo da intervenção biomédica,
conflitos que deverão ser resolvido pela interposição de uma
hierarquia destes, ante uma visão de mundo e uma visão
antropológica fundamental” (1995, p.22) e, prosseguindo, assevera
que deve inserir “o respeito concreto e a proteção às pessoas;
sua liberdade, sua inviolabilidade e qualidade de vida” (1995,
p.25). Mais adiante em suas considerações, este autor volta a se
referir à vida quando propõe um rol de temas inclusos no objeto de
estudo da bioética, dos quais destacamos “a eutanásia, obstinação
terapêutica, recuperação, verdade aos doentes, direito à
morte;[...]”
(1995, p.27).
De
especial interesse para o presente estudo é a dimensão que a
bioética objetiva, conforme elucidado pelo próprio Guy Durant,
descrevendo que “a bioética se preocupa com os casos individuais.
Ela se relaciona assim com a decisão pessoal do paciente e daqueles
que o rodeiam, seu diálogo e, finalmente, com a decisão final“
(1995,
p.28).
Este âmbito de abordagem é denominado de microética, em oposição
à macroética que trata do “equilíbrio dos direitos, pelas
estruturas sociais e legais a serem situadas, enfim, pelas condições
estruturais da promoção das pessoas e das sociedades, por
categorias sociais, econômicas, políticas e culturais das decisões
pessoais”(19995, p.28).
Assim,
notamos que o ato da escolha conscientemente de um paciente na recusa
às transfusões de sangue e suas implicações estão inseridas no
objeto da bioética. Justifica-se, portanto, uma análise mais
apurada desta interessante ciência, dentro de nossos estudos, o que
nos propomos a fazer no próximo tópico.
3.1.2.1 Princípios da Bioética
Vimos
a importância da Bioética para a preservação de padrões
salutares de investigação científica considerando o atual estágio
de pesquisas científicas aplicáveis à medicina. Passaremos a
abordar neste tópico a consideração de elementos norteadores da
própria Bioética, adotando a corrente principialista, ou seja,
passaremos a estudar cada um dos princípios que estabelecer-lhe-ão
seus necessários limites.
3.1.2.2 Princípio da beneficência
Considerando
tal princípio, Daury Cesar Fabriz (2003, p.108) preconiza que sua
finalidade será a de estabelecer um norte, uma referência, um alvo,
para o legislador, ou, como denominou, o “normatizador jurídico”,
que, olhando para a bioética, estabelecerá as normas que concedam
“direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica,
aos sujeitos da pesquisa, aos médicos e pacientes, bem como ao
Estado” estabelecendo condutas que propiciem o “bem-estar da
clientela” . O autor, ao prosseguir, cita Fátima de Oliveira,
advertindo que nas circunstâncias em que se exige a escolha entre o
bem-estar da pessoa ou os interesses da sociedade e da ciência, o
primeiro prevalecerá. De fato, opção inversa abriria oportunidade
de utilização do indivíduo como mero instrumento científico. O
homem estaria ocupando ora o lugar de beneficiário, ora o papel de
ferramenta da biociência.
Podemos
concluir que, se até mesmo quando os interesses da sociedade e da
ciência estão em jogo estes são superados pelos interesses do
indivíduo, uma vez que o princípio da dignidade prepondera sobre
aqueles interesses. Por sua vez, tanto mais o médico deve observar a
vontade do paciente quando este recusa uma terapia, pois, também,
sua dignidade está em questão devendo prevalecer já que é o valor
supremo no ordenamento jurídico.
3.1.2.3 Princípio da autonomia
O
princípio da autonomia estabelece que todos são responsáveis por
seus atos, sendo estes, por sua vez, fruto de sua livre escolha.
Daury Cesar Fabriz defende que “devem-se respeitar a vontade, os
valores morais e as crenças de cada pessoa” (2003, p. 109).
Guy
Durant tratou deste assunto sob o tópico de “autodeterminação da
pessoa” lembrando-nos que “ela constitui um primeiro princípio
fundamental, ainda que nem todos assim interpretem”
(1995, p.32s) e, para
justificar o princípio, cita duas razões: primeira, porque tem
conexão com a dignidade humana. Note-se que ele não se referiu ao
princípio da dignidade humana mas, sim, diretamente à dignidade da
pessoa, lembrando que “a pessoa, não é uma coisa, nem um objeto
para o qual se determina um comportamento, mas é livre para assumir
o seu destino” (1995, p.33);
segunda, a existência de uma espécie de contrato entre o médico e
seu paciente, entre o pesquisador e o ‘objeto’, exigindo-se uma
relação de confiança. O paciente deposita a confiança no médico
que, em contra-partida, não pode agir como soberano,como absoluto e
senhor do paciente que lhe procurou. Guy Durant é bastante enfático
ao abordar esta situação lembrando que “quando o paciente confia
em um médico, ele não renuncia a sua autonomia, ele não se dirigiu
a um grande feiticeiro que decidirá por ele. Ele simplesmente
precisou de um especialista que o ajudasse a resolver seus problemas”
(1995, p.33).
Do
que já foi exposto até aqui, podemos fazer uma reflexão. Uma
primeira consideração é concernente ao caráter do princípio,
sendo defendido como o primeiro ou principal na bioética. Depois,
podemos refletir nas conseqüências da decisão. O processo
decisório nas situações de consentimento ou recusa não é fácil,
pois, enquanto pode implicar um benefício por um lado, traz consigo
o ônus pelo que decidiu, uma vez que suportará, ele mesmo, as
conseqüências de sua decisão, sendo sua a vida que está em jogo,
ele é quem sentirá as dores que lhe acometerão. Pode parecer,
prima facie, redundante e óbvio o que afirmamos, mas se faz
necessário para fins de ênfase e reflexão. Explícito resulta
entender por que Guy Durant nos lembrou de que o paciente, ao
procurar um médico, não está abdicando de sua autonomia!
Quando
falamos em autodeterminação, deve se pressupo a escolha em virtude
de uma situação, um conflito fático: o paciente aceita a terapia
‘a’ ou a terapia ‘b’ que, por serem diferentes, implicarão
em graus de benefício, riscos e custos distintos. Os custos podem
ser de ordem financeira ou moral/ética.
Os
riscos estarão ligados à sua situação de saúde. Por tal razão,
é imprescindível ao paciente indagar sobre estes, em relação a
sua saúde, quando analisa se aceita ou recusa alguma terapia
podendo, até mesmo, rejeitar todas, em face dos efeitos colaterais,
chances de cura, questões de estética, ou razões de foro íntimo.
Imaginemos,
para exercício de argumentação, que um paciente acometido por um
tumor. A quimioterapia lhe estará a serviço, mas trará pesados
efeitos colaterais e estéticos que somente o paciente poderá
decidir se deseja pagar tal preço. Pode preferir não submeter-se ao
tratamento. Cabe somente a ele decidir, mesmo que implique uma
antecipação de sua morte. Não há como vislumbrar que o médico, o
diretor do hospital ou, ainda, a clínica, após informá-lo de sua
situação e as terapias disponíveis, avancem sobre seu corpo e
submetam-no à quimioterapia ao arrepio de sua vontade. Seria
violação aos princípios da autodeterminação e da dignidade da
pessoa humana. Tal paciente estaria sendo tratado como uma ‘coisa’
fazendo referência ao termo utilizado por Guy Durant, conforme
mencionado linhas acima. Defendem alguns que, estando a vida em
risco, estaria o médico autorizado a realizar a transfusão de
sangue, mesmo tendo o paciente se recusado a tal procedimento. Tal
assertiva nos remete a considerar o princípio do respeito pela vida.
Avançando
em nossa consideração, importante abordarmos outra faceta do
princípio da autonomia ou autodeterminação. Trata-se do
consentimento substitutivo, ou seja, aquele que diz respeito a
pessoas juridicamente incapazes, tais como os menores, deficientes
mentais e os permanente ou definitivamente inconscientes.
A
solução é trazida por análise aos princípios éticos
apresentados por Guy Durant, como: “procurar a vontade provável do
doente; solicitar um tutor ou um amigo, agir no melhor interesse do
doente, etc“(1995, p.36).
Neste
espeque o ordenamento jurídico brasileiro estabelece os preceitos
pertinentes, estabelecendo as formas e pessoas declaradas competentes
para, em nome do titular, exercer as escolhas pertinentes. Não se
fala em autodeterminação nestes casos, mas sim em consentimento
substitutivo. Destaque-se que em momento algum cogitou-se em
transferir tal autonomia ao médico. Aliás, de forma
exemplificativa, Guy Durant elenca uma situação em que
Ante
um menor, a maior parte das legislações atribuem a decisão aos
pais ou tutores. No sentido ético pode-se, tanto quanto for
possível, obter o conhecimento do jovem, principalmente se ele for
adolescente [...] A mesma atitude é exigida normalmente para os
deficientes mentais. [...] Com a pessoa em estado de coma pode-se
perguntar se ela exprimiu, anteriormente, sua vontade de maneira
explícita. Em caso afirmativo, se usa o tratamento. Caso contrário
pode-se tentar encontrar a vontade presumida do doente com seus
parentes. Em última instância pode-se escolher aquilo que parece
atender melhor ao paciente, presumindo que isso fosse a sua vontade.
(1995, p.36).
Concluímos,
assim, que caberá ao paciente, ou a alguém conexo a ele, a decisão
sobre qual terapia escolher, isto é, qual delas aceita e qual
rejeita, prerrogativa que encontra amparo nos princípios da
dignidade da pessoa humana e do livre consentimento ou da autonomia
do paciente, estes decorrentes do princípio da autodeterminação.
Apreendemos, de forma indubitável e explícita, que: a) a primeira
escolha, cabe ao paciente; b) não podendo exprimí-la, cabe aos
familiares, ao tutor ou, ainda, ao curador; c) não sendo possível
aferir destas formas a vontade do paciente, apenas de forma residual
a escolha será concedida ao médico.
Um
último apontamento se faz necessário, visando fortalecer a
motivação ou justificação do princípio da ‘autodeterminação
da pessoa’, qual seja a de que a escolha – consentimento ou
recusa – de uma terapia médica, tal como uma quimioterapia,
cirurgia ou ainda, uma transfusão de sangue, deverá ocorrer de
maneira consciente e motivada.
3.1.2.4 Princípio do respeito à vida
A
preocupação em manter a vida do ser humano remonta aos primórdios
da sua própria história, ou seja, desde que se ouve falar em
humanidade, também ouve-se falar em proteção à vida, havendo
variações de graus de proteção.
Na
tradição das religiões sob direção da Bíblia, vemos logo no
início de sua narrativa que puniu-se o assassinato, conforme
encontra-se registrado no livro de Gênesis 4:1-16, quando Caim
golpeou fatalmente Abel. Deus Jeová o puniu, mas, para que não se
lhe tirasse a vida por vingança da vida de Abel, Caim recebeu a
oportunidade de se manter refugiado. Mas tarde, quando Moisés
recebeu a tábua com os dez mandamentos, um deles, registrado no
livro de Êxodo 20:13 assevera: “Não deves assassinar” (BIBLIA,
1986, p.832
).
Quando
a moral e o direito se separaram da religião, o preceito de
preservação da vida mediante punição do assassinato continuou
merecendo importância destacada (DURANT, 1995, p.38). Mas, como
devemos encarar a vida? Conforme tutelado pelos sistemas jurídicos?
O que está envolvido quando nos referimos à vida humana?
Segundo
Guy Durant (1995, p.38) existem quatro correntes distintas que
preconizam, cada qual, seu conceito de vida. A primeira é denominada
‘Vitalismo’ e a declara sagrada devendo ser preservada mesmo
quando sob condições frágeis, de risco; apenas Deus é o dono da
vida. A segunda refuta o caráter sagrado da vida, admitindo até
mesmo exceções à inviolabilidade da vida. A terceira contrapõe,
em termos, o caráter sagrado da vida transformando-a em princípio e
admitem sua relativização por ser um princípio fundamental, mas
indeterminado. Por fim, a quarta corrente que, igualmente à segunda,
recusa o caráter sagrado da vida, porém ressalta a importância da
qualidade da vida.
No
contexto médico, implica atribuir maior ou menor importância à
vida por critérios de sua formação, chegando o citado autor,
afirmar que, estando duas vidas em perigo, escolhe-se aquela de maior
qualidade, por conter maior valor.
No
contexto da natureza, ecologia e sociologia, visa-se a melhoria da
qualidade de vida, isto é, a melhoria no ambiente exigindo empenho
para oferecer proteção em todas as formas, facetas e etapas. Este
segundo contexto também pode ser transferido para o ambiente da
medicina, sob o qual, o alvo mediato é aquilo que pode ser melhorado
não diretamente àquele paciente, mas sim, para o futuro. Sob este
prisma, Guy Durant (1995, p.32) afirma que
em
certos casos, poder-se-ia, então, concluir, que a melhor decisão –
levando-se em conta o estado do doente, de seu sofrimento e das
previsões – fosse cessar ou de não mais tentar um tratamento de
urgência, que na realidade faria apenas prolongar uma agonia ou
esticar uma vida biológica. Mas, também em outros casos, a decisão
será de tentar prosseguir o tratamento se houver uma esperança
razoável de controlar o sofrimento e de manter as funções normais
da vida.
Enfim,
o que se deve analisar é a possibilidade de oferecer maior conforto
e bem-estar a todos os pacientes, mesmo os que não tem noção
precisa de sua situação como os recém-nascidos e os deficientes
mentais.
Apesar
da corrente que se afilia ao enfoque da vida sob o prisma da
‘qualidade’ encará-lo diametralmente oposto ao caráter
‘sagrado’, Guy Durant entende que
é
possível então unir o conceito de qualidade de vida com o princípio
do caráter sagrado da vida. Em nossa opinião, não é necessário
colocar as duas máximas como oponentes, mas considerá-las como
complementares, ambas contribuindo para satisfazer as exigências
éticas do respeito pela vida humana (1995, p.44).
Concluída
a abordagem destes quatro espectros, voltemos à consideração do
‘princípio fundamental indeterminado’ para tecer um comentário
indispensável neste estágio de nossos estudos.
Guy
Durant (1995, p.40) lembrando que as religiões admitem que o homem
recebeu de Deus parte do controle sobre os seres [inclusive sobre
suas vidas] tendo a capacidade de entender e assumir as
conseqüências de suas decisões. Reiterou ainda, que a ética
filosófica não enxerga oposição entre o caráter sagrado da vida
e a prática da legítima defesa. Expôs, de forma cristalina, uma
evidência que não podemos nos furtar de aplicar. Destacou a
capacidade e, ainda mais, a competência das decisões do indivíduo
acerca de sua própria vida, e por decorrência, de seu próprio
corpo. Não retirou esta competência nem a capacidade sequer nas
circunstâncias de risco de vida. Raciocinou que “a prática
médica, com efeito, não considera a vida como ‘tabu’ e as
doenças, assim como os acidentes, como acontecimentos inesperados,
reconhecendo nos seres humanos a responsabilidade própria sobre a
vida e a morte”.
Assim,
podemos afirmar que o paciente tem plena capacidade em escolher a
terapia que deseja submeter-se – escolher significa aceitar ou
recusar - cabendo ao médico o dever de informar ao paciente sua
situação e as alternativas disponíveis, mesmo que ele, médico,
não as domine. Afinal, cada médico atuará em sua área de
especialização e, por isso, encaminhará o paciente ao profissional
mais adequado, já que o paciente, quando saiu de sua residência e
foi buscar um médico demonstra inegável interesse de obter
tratamento, como muito bem notificou-nos o próprio Guy Durant, e que
registramos a pouco.
Ademais,
o princípio do respeito pela vida, como introdutoriamente
considerado, visava primordialmente proteger os indivíduos dos
assassinatos e não foi instituído para retirar o direito da livre
disposição do corpo, tanto que não se pune o suicida, não
obstante, punir-se aquele que instiga outrem ao suicídio3.
Não
encontramos, por tal razão, fundamentação para retirar do paciente
seu direito à autodeterminação, ou seja, impedir que possa dispor
de seu próprio corpo, em qualquer situação. Por exemplo:
determinado paciente se encontra acometido de um aneurisma e não
aceita se submeter à intervenção cirúrgica apesar de recomendação
médica neste sentido, mesmo sob advertência de que tal recusa pode
custar-lhe a vida; o paciente entra em coma. Neste ínterim, o
médico, desconsiderando sua vontade, procede tal intervenção
cirúrgica, fundamentando-se no princípio do respeito à vida. Este
médico interpretou de forma equivocada o princípio, eis que se
dirige, primordialmente, contra aqueles que desejam ceifar a vida de
outros culposa ou dolosamente, como demonstrado inicialmente. Assim,
além de interpretar erroneamente este princípio, viola o princípio
da dignidade da pessoa humana e o princípio da autodeterminação ou
da autonomia.
3.1.2.5 Princípio da justiça
Ensina-nos
o Professor Daury César Fabriz (2003, p.111) que o princípio da
justiça consiste na concessão equitativa e universal de
disponibilização dos instrumentos do Estado para os serviços de
saúde, na efetivação da cidadania, sendo coadjuvante do princípio
da beneficência.
O
princípio de justiça implica um tratamento de igualdade por parte
do Estado e também um sentimento de sujeição coletiva para atingir
um ideal comum, por isso tendo características estéticas diferentes
em cada povo. Daury César Fabriz (2003, p. 236) nos assevera,
neste sentido, que “cada comunidade humana deverá, a partir desse
sentimento, construir democraticamente o seu conceito de justiça que
seja mais apropriado ou adequado aos seus anseios, aplicável às
suas próprias demandas”.
Deve,
então, sob as normas Constitucionais, buscar-se pelos princípios de
justiça a fim de indicar a direção e os limites das relações
sociais, bem como obter a formação dos parâmetros das práticas da
bioética. Exorta-nos ainda o Prof. Daury Cesar Fabriz que “o
poder de decisão médica deve aliar-se à justiça. É o que ocorre
quando há um conflito entre a responsabilidade médica e a autonomia
do paciente, ou de sua família, visando a proteção da vida”
(2003, p.119).
3.1.2.6 Princípio da não-maleficência
O
princípio da não-maleficência (primum
non nocere) decorre do
princípio da beneficência e, em linhas gerais, implica não
provocar dano algum a outrem (FABRIZ, 2003, p.107). Sua aplicação
mais imediata neste estudo dá-se com a observância do profissional
da medicina em atender a vontade do paciente, abstendo-se em
provocar-lhe qualquer mal, quer físico quer psicológico. Não há
dificuldade em se verificar que tal princípio é frontalmente
violado se ao paciente for ministrada terapia da qual se opõe de
forma justificada, consciente e expressa.
3.1.3 Princípios da Bioética na recusa às transfusões sanguíneas
Podemos
aprofundar a análise, escolhendo uma situação comum, em que, na
raras vezes, há situações extremas, isto é, apresenta-se uma
circunstância que contrapõe o direito à vida com o direito à
escolha, e consequente recusa, a determinada terapia. Referimo-nos à
escolha que os pacientes fazem, por alternativas às transfusões de
sangue. Analisemos esta questão, a partir de um artigo escrito pelo
Dr. A. Shander (2000, p.1) médico anestesiólogo do “The New
Jersey Institute Englewood Hospital And Medical Center, USA,
que tratará dos aspectos bioéticos nos tratamentos de pacientes que
se recusam às transfusões de sangue, inclusive as Testemunhas de
Jeová. Em considerações iniciais, este anestesiólogo invocou a
necessidade de abordar os quatro princípios da bioética, a saber:
1) o princípio da justiça; 2) o princípio do respeito à autonomia
do paciente; 3) o princípio do dano ou do malefício e, também, 4)
o princípio do benefício. Estes princípios serão tratados no
próximo sub-tópico, por motivos didáticos.
Após
tratar de forma resumida cada um dos princípios acima enumerados, o
Dr. Shander trouxe a origem dos conflitos da bioética, resumindo-o
da seguinte forma: “La definición de bioética y la esencia de
todos los dilemas éticos em la práctica clínica surgen de que
siempre hay otras personas que no desean lo mismo que uno para si“
(2000, p.2) lembrando que a sociedade é, deveras, diversificada o
que impede que o médico e o paciente compartilhem do mesmo sistema
de valores, o que auxilia na compreensão da existência de conflitos
entre a posição do paciente e do médico.
No
caso das Testemunhas de Jeová, topificou o Dr. Shander, o conflito
tem como gênese a convicção do caráter sagrado que a Bíblia
atribui ao sangue, o que, pelo estrito cumprimento aos preceitos
bíblicos, impede que um membro seu se submeta à tratamento que
implique a transfusão de sangue, não obstante, aceitam alternativas
como: expansores do volume de origem não humana, recuperadores de
células, hemodiluição normovolêmica aguda, ‘by-pass’,
circulação extra-corpórea, novos métodos cirúrgicos para o
controle da hemostasia, drogas derivadas de sangue, albumina,
hemoglobina, preparações para hemofílicos e, ainda, as novas
terapias com oxigênio, o que, em sua opinião não é complexo,
dando oportunidades de boa margem para terapias
(SHANDER, 2000, p.2).
Todavia,
o Dr. Shander apontou a raiz do conflito entre a vontade do paciente
e a postura do médico expressando que “el problema está em que
los pacientes rechazan las transfusiones sanguíneas y los médicos
consideran a los pacientes Testigos de Jehová como a herejes em al
catedral de la medicina“ (2000, p.2) lembrando que a postura dos
médicos no passado era, conforme termo que utilizou, muito
paternalista pois diziam “debes recibir sangre, de outra manera no
sobrevivirás” (2000, p.2) ou ainda, depreciavam a postura dos
pacientes indagando que tipo de religião é esta que permite que
seus membros morram? E, por isso, recorram, os médicos, ao sistema
legal em busca de coerção para aplicar a transfusão de sangue à
revelia da vontade do paciente, mostrando que não se preocupava com
ele.
A
postura mais ética recomendada e aplicável seria transferir este
paciente para um médico que venha a acatar a vontade do enfermo,
lembrando que “el sistema de valores próprio del médico debe
manterse em mente, pero reservarlo para su vida privada, no para su
vida profesional“
(SHANDER,
2000, p.3).
Hodiernamente,
o que ocorre em tais casos é que o paciente acaba por ser abandonado
sob os protestos do médico que raciocina sobre a posição do
cliente e reage argumentando que se o paciente recusa a transfusão
de sangue nada mais poderá ser feito por ele. O Dr. Shander (2000,
p.3) todavia, chama atenção para o fato de que o paciente, ao
informar sua decisão de recusa à transfusão de sangue em sua
terapia, passa a ser vítima de omissão do médico, não pelo fato
de que não se lhe administra sangue, mas pelo fato de que o médico
não lhe oferece nenhum tratamento alternativo. Contudo, alerta que
os direitos do médico podem até justificar uma desconsideração
pela vontade do paciente quando tal decisão apresenta-se pouco
razoável. Exemplificou ilustrativamente com a hipótese de uma
paciente com 95 anos portadora de demência cujos familiares procuram
num hospital intervenção médica para transplante de coração.
Isto parece pouco razoável e pode ser recusado, conclui. Mesmo
assim, esta família pode recorrer a outro médico, para fazer
prevalecer a vontade do paciente.
Todavia,
podem ocorrer diferentes situações que se distanciam dos casos
padrão, ou seja, há situações extremas, em que uma decisão deve
ser tomada em circunstâncias distintas, como as seguintes: primeiro,
a do menor que necessita de cirurgia. Há duas variantes, neste caso:
primeira, a do menor que, juridicamente é incompetente, mas é
capacitado para exprimir sua decisão; a segunda, do menor que não
usufrui ainda de capacidade para exprimir sua decisão. São ambas
circunstâncias distintas daquela em que é um adulto que toma a
decisão de rejeitar a transfusão de sangue e ainda, deixa esta
vontade expressa em documento revestido das formalidades para
produzir todos os efeitos legais.
Continuando
seu raciocínio, esclarece o Dr. Shander que, nos Estados Unidos, o
adulto usufrui de autonomia e, em decorrência, lhe é conferido o
direito de recusar determinada terapia ou cuidado médico,
conservando-se a integridade corporal da pessoa. Reserva-se,
portanto, ao adulto, a prerrogativa de recusa de terapia que põe em
risco um membro de seu corpo ou ainda um órgão vital.
Em
seguida o Dr. Shanders expressa que a decisão do paciente é feita
com base fundamentada nas informações que o médico lhe dá. Estas
informações, ao passo que constitui um direito do paciente, também
implica uma obrigação do médico, com gênese na manifestação de
vontade, que resulta num fator determinante para o médico, como se
denota na expressão: “Estos son los dos elementos del
consentimiento informado en el cual el consentimiento es dado o
negado sin derecho a apelar por parte de los clínicos” (2000,
p.3).
Se
o paciente tem o direito de ser informado e o médico tem o dever de
informar sobre as terapias necessárias e métodos disponíveis e
sobre os riscos e benefícios de cada um, para que o paciente se
manifeste de forma inequívoca acerca de sua escolha – pois como
corolário, entendemos que é do paciente a prerrogativa de escolha,
pela linha de abordagem aqui traçada pelo Dr. Shanders. Qual seria a
conseqüência em caso de inobservância por parte do médico à
vontade do paciente? O próprio parecerista responde-nos que
Las
consecuencias de la ruptura del consentimiento tienen el mismo peso
que temas tan sérios como la idolatria, la falsa adoración, el
adulterio o la inmoralidad sexual. La administración desmedida de
sangre puede ser moralmente equivalente a una violación (2000,
p.3).
De
fato restou demonstrado que o Dr. Shanders tem em mente os aspectos
religiosos e morais envolvidos. Morais, quando relaciona à questão
a imoralidade sexual e o adultério; religioso, quando o relaciona à
prática de idolatria e falsa adoração. Aplicando seu
posicionamento, podemos dizer que obrigar o paciente a receber uma
transfusão de sangue contra sua vontade equivale a submetê-lo a uma
relação sexual contrário à seu consentimento, isto é,
sujeitá-lo a um estupro.
Inicialmente,
abordou a questão de um adulto com capacidade de exprimir sua
vontade, mas, qual procedimento adotar quando uma paciente obstétrica
exprime sua recusa? Afirma-nos o Dr. Shanders que "los pacientes
obstétricos tienen los mismos derechos que cualquier adulto
competente" (2000, p.3) e cita-nos o exemplo de uma mulher que
está grávida e recusa um tratamento para que o feto venha a
sobreviver, sendo enfático ao afirmar que "El Estado debe
preservar el derecho a la vida del niño y además el derecho de
autonomia del paciente, siendo esto imposible"
(2000, p.4)
tendo determinado a Suprema Corte dos Estados Unidos determinado que
o Estado não pode desrespeitar a competente decisão da mulher
grávida, tendo esta,ainda, julgado serem as transfusões sangüíneas
procedimentos invasivos, pois violam a integridade física do adulto
não competente.
Em
decorrência destes posicionamentos judiciais, a Associação Médica
Americana (AMA - American Medical Association) e a Faculdade
Americana de Obstetrícia e Ginecologia estabeleceram procedimento
padrão devendo-se enfrentar o problema de forma objetiva e que não
se justifica recorrer à Corte para dirimir tais litígios,
observando, ademais, o Dr. Shanders, que mais nenhuma petição,
deveras, foi apresentada, visando obter autorização judicial pois
as que vinham sendo apresentadas buscavam o ataque ou a agressão à
vontade do paciente o que estaria violando o consentimento informado
(2000,
p.4).
Conclui
o anestesiólogo, esta consideração, por apresentar os seguintes
itens a observar: a) tanto para os casos dos filhos das Testemunhas
de Jeová como para os pacientes pediátricos, há que se considerar
a capacidade de decisão do menor; b) considerar a efetividade e os
riscos do tratamento, neste caso, não importando se o paciente é
menor ou não.
Portanto,
conclui o Dr. Shanders: "si la vida del niño está en peligro
los padres deben si se requiere" (2000, p.4). Este
é um caso em que o médico substituirá, a seu ver, a vontade do
paciente e dos responsáveis. Em outra situação, o médico deve
respeitar a posição do paciente, como no caso de um menino de
quatorze anos que se sabia estar compreendendo as implicações de um
determinado tratamento; outro, em contraposição, de três anos que
negava-se a um simples tratamento à base de antibióticos para
enfrentar uma meningite; outro paciente de dezessete anos que,
portador de leucemia, rejeitou nova quimioterapia após duas
tentativas, o que representaria um pequeno benefício a um alto
custo. Assim, este médico exemplificou nestes três casos, as
diferenças entre um menor com capacidade de decisão e um menor, com
três anos, sem condições de decidir por si.
As
circunstâncias no Chile, conforme explanação deste anestesiólogo,
são similares às verificadas nos Estados Unidos (EUA), onde, se um
jovem cresce sob os ensinamentos das Testemunhas de Jeová e entende
as implicações de suas decisões, pode ser considerado como um
'menor maduro' e deve ter suas decisões consideradas. Conclui:
"Los
pacientes tienen derechos legales y éticos para autodeterminar y
decidir sobre su comportalidad" (SHANDERS, 2000, p.4).
No
Brasil, verificamos que os hospitais invocam o Estatuto da Criança e
do Adolescente para aplicar medidas de proteção à criança e ao
adolescente, alegando omissão dos pais. Uma rápida análise,
demonstrará que tal fato não está adequado à uma interpretação
teleológica. O art. 98 preceitua que:
Art.
98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são
aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem
ameaçados ou violados:
I
– por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II
– por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável
III
– em razão de sua conduta.
Não
podemos negar que a omissão dos pais pode ensejar a atuação do
Estado, nomeando-lhe um tutor. Mas, a conduta dos pais que,
detectando necessidade de tratamento médico de seu filho, leva-o a
hospital e exigem o melhor tratamento, isento de riscos para
restabelecer -lhe a saúde, não pode, de forma alguma, ser
considerada conduta negligente, omissa. É diversa, esta conduta,
daquela em que os pais, mesmo percebendo que o filho está enfermo,
deixa-o em casa, acreditando em cura milagrosa ou simplesmente ignora
a moléstia.
Um
exemplo de que a escolha dos pais é pelo bem-estar do menor,
afastando qualquer sentimento de fanatismo, foi salientado em
reportagem exibida por uma rede de televisão brasileira, aos 09 de
abril de 2004 (Globo Repórter), comprovando, em síntese, que: a) os
pais, ao decidirem, buscam o melhor tratamento disponível,
respeitando sua posição e desejando um tratamento que preserve a
dignidade do menor; b) a medicina possui alternativas confiáveis; c)
outros pacientes têm se beneficiado pelas pesquisas e avanços da
medicina, em tratamento alternativo às transfusões reduzindo o
risco que estas implicam.
Vimos,
então, que a bioética, através da aplicação de seus princípios,
protege de forma abalizada os direitos do paciente, ressaltando a
efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana,
resguardando, de modo inafastável, sua vontade.
CONCLUSÃO
Buscamos
confrontar os Direitos Humanos para encontrar, num diálogo com a
bioética, o alcance da autodeterminação. A questão enfrentada se
refere ao direito do paciente escolher – aceitando ou recusando –
determinada terapia para solucionar sua moléstia, quando o reflexo
poderia provocar a perda da vida.
Abordando,
inicialmente, a dignidade da pessoa humana, encontramos uma definição
que abarca direitos e deveres do Estado e da comunidade para afastar
qualquer ato humilhante ou degradante à pessoa humana, garantindo
condições mínimas de existência. Também, verificamos que a
dignidade decorre da capacidade de razão do ser humano, sendo o mais
alto valor que o Estado deve tutelar.
A
bioética protege, juntamente com o código de conduta ética dos
médicos, o paciente para tomar decisões sobre seu próprio corpo.
Assim, apuramos que o paciente deverá tomar conhecimento de sua
situação física, saber quais são as alternativas de tratamento e,
por fim, decidir qual aceita e qual recusa.
As
principais declarações sobre Direitos Humanos protegem a liberdade
da pessoa, inclusive de decidir sobre si, vedando que outras pessoas,
ou até mesmo o Estado, interfira em sua vida, salvo para proteger a
sociedade ou terceiros.
Por
fim que, excetuando-se as situações de risco de contaminação da
população, não há fundamento nas Declarações de Direitos
Humanos para retirar do paciente, quando decide de modo consciente e
fundamentado, a escolha para submissão ou recusa à terapias ou
cirurgias, mesmo sob risco de vida, uma vez que está em questão a
dignidade de sua própria vida, valor maior que o Estado deve
proteger.
REFERÊNCIAS
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2.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999.
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de 07 de dezembro de 1940. Código
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2003.
SHANDER,
A. Bioética
en el Tratamiento de Pacientes Testigos de Jeová.
Revista Hospital Clínico Universidad de Chile, Chile, v.11, n. 4,
2000.
1Mestre
em Direito Constitucional e Especialista em Direito Processual Civil
pela FDV/Vitória-ES. Diretor da Academia Brasileira de Direitos
Humanos. Professor de Direito Constitucional. Advogado.
2Utilizou-se
a Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas publicada pela
Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, que baseou-se na
versão inglesa de 1984.
3
Código Penal, art. 122: “Induzir ou instigar alguém a
suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça.”
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